Baixe o livro digital nos formatos:
ÍNDICE
Sobre Disciplina
(Anotações de uma reunião em 1841)
Jonh Nelson Darby
Nota do Editor
Devemos notar que este pequeno artigo, impresso a partir de anotações de uma fala em uma reunião (1841), refere-se ao espírito que encoraja o indivíduo ao lidar com o mal. Como a Palavra de Deus expressamente ordena, é esperado que o mal seja excluído. Somos obrigados a manter a casa de Deus limpa, a vigiar diligentemente para que ninguém caia da graça de Deus, para que não haja entre nós isso ou aquilo, para julgar os que estão dentro e tirar de dentro os iníquos. No entanto isso é algo que prova a nós mesmos se estamos limpos. Deus quer que o lugar de Sua habitação esteja limpo. A questão de se afastar dos malfeitores – um mandamento positivo da Palavra – não está sendo abordada aqui. O objetivo desta publicação é o espírito no qual a disciplina deve ser exercida.
Introdução
Devemos lembrar o que somos em nós mesmos, quando falamos sobre o exercício da disciplina – isso é uma coisa admiravelmente solene. Quando reflito que sou um pobre pecador, salvo por pura misericórdia, permanecendo somente em Jesus Cristo para ser aceito, vil em mim mesmo, é, evidentemente, algo terrível tomar a disciplina em minhas próprias mãos. Quem pode julgar senão Deus? Este é o meu primeiro pensamento.
Aqui estou, sendo nada, em meio a pessoas queridas ao Senhor, a quem devo olhar e estimar mais do que a mim mesmo, na consciência de minha própria pecaminosidade e nulidade diante do Senhor; e falar sobre exercer disciplina! – é um pensamento muito solene, de fato, para minha própria mente; isso pesa sobre mim de forma especial. Só uma coisa me tira esse sentimento, e esta é a prerrogativa do amor. Quando o amor está realmente em exercício, ele não se importa com nada além da realização de seu objetivo. Contemple isso no Senhor Jesus; não importava o que estivesse no caminho, Ele prosseguia. Essa é a única coisa que pode, de modo adequado, aliviar o espírito da percepção de uma posição completamente falsa no exercício da disciplina. No momento em que abandono essa percepção, a disciplina passa a ser uma coisa monstruosa. Embora o assunto da conduta seja a justiça, o que faz com que essa conduta vá em frente é o amor – o amor em exercício, para garantir, apesar da dor para mim mesmo, a bênção da santidade na assembleia. Não é uma posição de superioridade na carne (veja Mateus 23:8-11). Não temos, de forma alguma, o caráter da disciplina como sendo “mestre”. Embora influenciados pelo amor para manter a justiça e estimulados a um zeloso cuidado vigilante um pelo outro, devemos sempre nos lembrar que, afinal, “para seu próprio Senhor”, nosso irmão, “está em pé ou cai” (Rm 14:4). Somente o amor guia isso, e o amor em ação o revela. Vemos esse caráter de disciplina no Senhor Jesus, quando Ele tomou um azorrague de cordéis para expulsar os que profanavam o templo (Mt 21; Jo 2); mas isso foi antecipação de outro caráter de Cristo, quando Ele executará o juízo.
Existem dois ou três tipos de disciplina, cheios de conforto por mostrarem a associação do indivíduo com todo o corpo e com Deus, e esses tipos normalmente têm sido confundidos entre os Cristãos.
Neste país há muito mais dificuldade ligada à questão da disciplina do que em outros lugares, por causa de certos hábitos de ação, pelos quais a disciplina passou a ser vista meramente como um ato deliberativo e judicial. Pessoas têm se associado voluntariamente, e tem havido o hábito de criar leis para o bem desse grupo assim criado. Cada associação faz as suas próprias regras, porque as pessoas devem se proteger.
Porém, esse princípio está tão longe da verdade quanto o mundo está da Igreja, ou a luz está das trevas. Não se pode admitir, na assembleia, qualquer princípio de associação voluntária, ou de regras de proteção próprias. A vontade do homem é o que traz destruição eterna. Ela pode ser modificada, mas o princípio é totalmente falso. Não existe tal coisa como ação voluntária da parte do homem nas coisas de Deus; a ação deve ser feita sob Cristo, pelo Espírito. No momento em que tenho a vontade do homem, tenho o serviço do diabo e não o de Cristo. Isso ocasionou grande quantidade de dificuldades práticas, que os que são de fora não percebem. Agir de acordo com o conceito de um processo judicial, para o julgamento de crimes, por certas leis, me leva completamente fora do terreno da graça; com isso confundo todo tipo de coisa.
Disciplina em Amor Fraternal
A declaração desenvolvida em Mateus 18:15-17, embora frequentemente citada, não parece se relacionar com o assunto. É uma questão de ofensa feita a um irmão; e nunca é dito, a respeito daquele que provocou a ofensa, que a assembleia deva excluí-lo; mas, “considera-o (tú) como um gentio e publicano”. Talvez esse seja o caso quanto à Igreja futuramente, mas não é o seu caráter aqui, e sim simplesmente: “considera-o como”, etc. – não tendo mais nada a ver com ele. Isso supõe um caso de uma injustiça cometida contra um indivíduo, como na expiação da culpa, onde é dito: “Quando alguma pessoa pecar, e transgredir contra o SENHOR, e negar ao seu próximo o que se lhe deu em guarda” (Lv 6:2), etc[1]. Há a soberania da graça para perdoar, mesmo “setenta vezes sete”; mas “não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por causa dele” (Lv 19:17 – TB). Uma pessoa me prejudicou: como devo agir? Não ajo em disciplina do Pai, nem em disciplina do Filho sobre Sua própria casa; mas, agindo para com ele em amor fraternal, digo a ele: “Irmão, você me fez mal, me ofendeu”, etc. Antes de qualquer coisa há essa apresentação sincera dos motivos da repreensão em justiça, porém, agindo dessa maneira, não podemos sair do âmbito da graça. Tendo feito isso, se ele não me ouvir, levo dois ou três comigo, “para que, pela boca de duas ou três testemunhas”, etc. Se isso falhar, então, eu digo para toda a assembleia. Se ele se recusar a ouvir a assembleia: “Considere-o como...”, etc. Essa orientação representa o curso de uma conduta individual, e o resultado, uma posição individual com relação a outro. Pode ser que chegue a um caso de disciplina na assembleia, mas não necessariamente. Eu vou a meu irmão na esperança de ganhá-lo para o arrependimento, para recolocá-lo em sua relação correta, comigo, e com Deus, (onde há falha no amor fraternal, isso necessariamente afeta a comunhão com o Pai): porém, se meu irmão é ganho, isso se encerra aí e nunca sairá isso dos meus lábios; nem a assembleia nem qualquer outra criatura saberá algo sobre isso, mas somente nós dois. Se tiver havido fracasso, devo agir para restaurá-lo em comunhão com todos.
Disciplina do Pai
Quanto à disciplina do Pai, há muito mais da prerrogativa individual da graça nisso. Tenho dúvidas se isso deva estar sob os cuidados de um corpo de Cristãos; antes, esse é o exercício do cuidado individual. Não vejo que a assembleia esteja no lugar do Pai. A ideia de superioridade é verdadeira em certo sentido; há diferença de graça assim como de dom. Se eu tiver mais santidade, devo ir e restaurar meu irmão (Gl 6:1). Porém, essa ação individual em graça não é disciplina da assembleia. É muito importante manter essas coisas claras e distintas, de modo que, embora a pessoa esteja pronta para estar sujeita aos dois ou três, a energia individual não deve ser restringida, mas permanecer clara e intocada. O Espírito Santo deve ter toda a Sua liberdade. Eu poderia supor um caso em que um indivíduo tivesse que ir e repreender a todos em seu redor, como Timóteo: “instes... repreendas, exortes, com toda a longanimidade”, etc. (2 Tm 4:2). Isso é disciplina; mas a assembleia não tem nada a ver com isso, é ação individual.
Mas, novamente, a assembleia pode ser forçada a exercer disciplina, como no caso dos coríntios (1 Co 5). Os coríntios não estavam nem um pouco preparados para exercer disciplina; mas o apóstolo insiste para que eles o façam. Há aquilo que é o exercício individual da energia do Espírito no ministério da graça e da verdade, e coisas semelhantes, sobre a alma dos outros; e a ação da assembleia não está de forma alguma envolvida. É um mal fazer da disciplina da assembleia a única disciplina. Seria uma coisa terrível se fosse necessário trazer todo o mal diante de todos. Não é a tendência do amor trazer o mal a público: “O amor cobre uma multidão de pecados”. Se ele vê um irmão pecar, um pecado que não seja para a morte, ele vai e ora por ele; e esse pecado pode nunca vir a ser tratado como uma questão de disciplina na assembleia. Creio que nunca há um caso de disciplina na assembleia, que não seja para a vergonha de todo o corpo. Ao escrever aos coríntios, Paulo diz: “nem ao menos vos entristecestes”, etc., todos eles estavam identificados com isso. Como uma ferida no corpo de um homem, ela fala da doença do corpo, da condição física. A assembleia nunca estará preparada, ou na posição de exercer disciplina, a menos que tenha primeiro se identificado com o pecado do indivíduo. Se não o fizer dessa maneira, ela assume uma forma judicial, que não será a ministração da graça de Cristo. Cristo ainda não tomou plenamente Seu lugar de Juiz. No momento que isso acontecer – a declaração “Quem é injusto faça injustiça ainda”, etc. –, a Igreja terá se afastado completamente de seu lugar. Na presente dispensação o caráter sacerdotal dela é o de graça.
Caráter da Disciplina do Pai
Qual é o caráter do cuidado e disciplina paternal? Como um pai os exerce? Isso não é porque ele é o pai? Ele não está no mesmo lugar que o filho, e esse é o princípio do cuidado e disciplina. Há alguém superior em graça e sabedoria, vendo alguém tomando um caminho equivocado em seu julgamento, diz a ele, “Eu já passei por isso”, etc. – “não vá, mas deixe de fazer isso ou aquilo”. Suplicando e expondo as circunstâncias em amor; embora, em caso de resistência, a repreensão possa ser necessária. O pai pode fazer toda a concessão para a fraqueza e inexperiência, por ele próprio ter tido a mesma experiência. Ainda que você sempre se faça um servo, o princípio do pai precisa ser mantido; e é um princípio de superioridade individual, embora acompanhado pela graça. O mundo inteiro não pode me deter. É uma prerrogativa do amor individual dizer: “ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado”. Isso flui do amor do pai e me leva ao outro, em amor. para não permitir que ele erre. Não se trata de um caso de transgressão contra mim, mas um caso de caminhada ou conduta contrária ao seu lugar como filho. Nós falhamos, porque não gostamos de passar pela dor e pelo problema que isso causa. Se um santo cai em apuros, ele é ovelha de Cristo; e eu sou obrigado, da maneira que eu puder, procurar tirá-lo disso. Ele pode dizer: “O que isso tem a ver com você?”, e coisas assim; mas eu devo ir e me colocar aos seus pés, a fim de tirá-lo da armadilha em que ele caiu, mesmo que ele não goste de mim por isso. Isso requer o espírito de graça e o esforço em suportar tudo em sua própria alma.
Disciplina de Cristo como Filho “Sobre a Sua Própria Casa”
O outro tipo de disciplina é a de Cristo, como Filho “sobre Sua própria casa”. O caso de Judas é de grande valor aqui. É impossível que a hipocrisia, ou qualquer outra coisa, continue onde há espiritualidade. Isso sempre será assim, se há espiritualidade no corpo, o mal não pode continuar por muito tempo. No caso de Judas, a graça pessoal do Senhor superou tudo; e sempre será assim, proporcional e praticamente. A maior manifestação do mal foi contra esta graça – “O que come o pão Comigo levantou contra Mim o seu calcanhar”; “E, tendo Judas tomado o bocado” (a graça se manifestou completamente, quando foi demonstrado que o mal foi feito contra o Senhor), “saiu logo”, João 13. Essa disciplina nunca age além do que é manifestado; e, portanto, vemos os discípulos questionando uns aos outros o que essas coisas significavam, antes que o mal fosse feito; Isso não tocou a consciência da assembleia.
A disciplina do Pai entra onde não há nada manifesto, naquilo que é secreto, ou que pode ser manifestado anos depois. Se um irmão mais velho, vendo um mais novo em perigo, deveria, nesse cuidado paternal, lidar e contar ao mais novo sobre o perigo; mas isso é muito distinto da disciplina da assembleia. No momento em que exercito a disciplina paterna, ela pressupõe haver em mim mesmo uma comunhão pessoal com Deus sobre a questão – um discernimento daquela obra em outro que pode produzir o mal – uma percepção que tenho por minha experiência espiritual, que o outro não tem, que me autoriza e me incita a agir em amor fiel para com ele, embora sem, talvez, qualquer capacidade de explicar o que estou fazendo a um ser humano.
A mistura dessas três coisas, a admoestação individual, a disciplina do Pai nesse cuidado paternal e a disciplina de Cristo “como Filho sobre Sua própria casa” – disciplina eclesiástica – levou a todos os tipos de confusão, das mais terríveis.
Caráter da Disciplina do Filho “Sobre a Sua Própria Casa”
A grande parte da disciplina deve ser totalmente direcionada a evitar o ato de excomunhão – colocar uma pessoa fora. Noventa por cento da disciplina que deveria ocorrer é de natureza individual. Se se trata da questão do exercício da disciplina do “Filho sobre Sua própria casa”, a assembleia nunca deve discutir ou debater sobre ela, mas sim estar em autoidentificação, em confissão de pecado comum e vergonha, por ela ter chegado a isso. Portanto, não seria um tribunal de justiça, mas uma desonra para o corpo. A espiritualidade na assembleia eliminaria a hipocrisia, a contaminação e tudo o que é indigno, sem assumir um aspecto judicial. Nada mais abominável do que tal coisa acontecer na casa de Deus. Se fosse na nossa casa que algo desonroso e vergonhoso tivesse acontecido, será que nos sentiríamos totalmente despreocupados, como se não tivéssemos nada a ver com isso? Se algum filho perverso devesse ser expulso, por causa dos outros – se ele não pudesse ser recuperado e está corrompendo a família – o que poderia ser feito? Se fosse necessário dizer: “Não posso mantê-lo aqui; não posso corromper os outros por causa de seus hábitos e maneiras”. Não seria isso, no entanto, motivo de choro e lamento, de tristeza de coração, vergonha e desonra para toda a família? Ninguém gostaria de falar sobre o assunto; e se absteriam disso para poupar seus sentimentos: o nome daquele filho nem seria mencionado. Considerando a casa do Filho, como é repugnante o ato de colocar alguém fora de comunhão! Que vergonha para todos! Que angústia! Que tristeza! Não há nada mais abominável a Deus do que um processo judicial.
A Igreja está realmente mergulhada em corrupção e fraqueza; mas isso é exatamente o que faria alguém se apegar aos santos, e mais ansiosamente manter a responsabilidade individual daqueles que têm algum dom para o cuidado pastoral. Não há nada que eu ore mais do que o ministério dos pastores. O que quero dizer com um pastor é uma pessoa que pode suportar toda a tristeza, cuidado, miséria e pecado de outro em sua própria alma, e ir a Deus sobre isso, e trazer de Deus aquilo que satisfaz essas coisas, antes que ele vá para o outro.
Há outra coisa muito clara. O resultado pode ser o colocar fora de comunhão; mas se chegar a um ato corporativo de julgamento, a disciplina termina no momento em que ele é posto fora e termina completamente. “Não julgais vós os que estão dentro? Mas Deus julga os que estão de fora” (1 Co 5:12-13).
Auto-disciplina
A questão de saber se posso me sentar com esta ou aquela pessoa que está dentro nunca surge. Uma pessoa que se ausenta da comunhão (por causa de outra, que ela não concorda que esteja lá) é a coisa mais incomum; ela está se colocando fora de comunhão por causa de outra. “Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo; porque todos participamos do mesmo pão” (1 Co 10:17). Se eu me afastar, estou dizendo que não sou Cristão, porque outro errou. Não é assim que se deve agir. Pode haver um passo a ser dado, mas não é cometer a tolice de me colocar fora de comunhão, para que um pecador não se intrometa.
Toda disciplina até o último ato é restauradora. O ato de colocar fora de comunhão, não é (propriamente falando) disciplina, mas a declaração de que a disciplina é ineficaz, e que ela chegou ao seu fim; a assembleia diz: “Não posso fazer nada além”.
Unanimidade
Quanto à questão da unanimidade nos casos de disciplina na assembleia, precisamos nos lembrar de que é o Filho exercendo Sua disciplina sobre Sua própria casa. No caso de Corinto, foi a ação direta de Paulo no poder apostólico sobre o corpo, e não o da assembleia. Não se pode conceber algo mais terrível do que o corpo reivindicando um direito de exercer a disciplina! Isso é transformar a família de Deus em um tribunal de justiça. Suponha o caso de um pai tirando de casa um filho perverso, e os outros filhos da família dizendo: “Temos o direito, para ajudar nosso pai a tirar nosso irmão de casa”. Que coisa horrível! Encontramos o apóstolo forçando os coríntios a exercer disciplina, quando não estavam nem um pouco dispostos a fazê-lo. Em 1 Coríntios 5 ele diz: “há fornicação entre vós... e nem vos entristecestes, por não ter sido tirado dentre vós quem cometeu tal ação” (ele está forçando os coríntios à convicção de que o pecado é deles, assim como era daquele homem); e então diz, “tirai dentre vós a esse iníquo”. A assembleia nunca está no lugar de exercer disciplina até que o pecado do indivíduo se torne o pecado da assembleia, reconhecido como tal.
Assim, é dito: “Aos que pecarem, repreende-os na presença de todos, para que também os outros tenham temor” (1 Tm 5:20), “Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai [restaurai – TB] o tal com espírito de mansidão”, etc. (Gl 6:1), e há outras passagens semelhantes, mas, se o mal surgiu com tal caráter que exige a excomunhão, em vez de a assembleia ter o direito de tirar a pessoa da comunhão, ela é obrigada a fazê-lo. Os santos devem mostrar que estão puros nesse assunto. Paulo força aquelas pessoas a reconhecerem sua própria condição, faz com que se envergonhem de si mesmas – elas se afastam do homem – e ele é deixado sozinho na vergonha de seu pecado (veja 2 Coríntios 2 e 7). Foi assim que o apóstolo os forçou a exercer disciplina. A consciência de toda a assembleia foi forçada a se purificar de uma questão na qual era corporativamente culpada. E que problema ele teve para fazer isso! Esta é, penso eu, a força da passagem: “E a quem perdoardes alguma coisa também eu; porque o que eu também perdoei, se é que tenho perdoado, por amor de vós o fiz na presença de Cristo; para que não sejamos vencidos por Satanás, porque não ignoramos os seus ardis”. O que o diabo estava fazendo era isso: o apóstolo insistiu em colocar o homem fora de comunhão (1 Co 15:3-5), e a assembleia não gostou. Ele os obrigou a agir, e eles fizeram isso de maneira judicial e não queriam restaurá-lo (2 Co 2:6-7). Então, faz com que eles concordem com ele no ato da restauração: “a quem perdoardes”, etc. O desígnio de Satanás era introduzir a impiedade e torná-los descuidados com ela e, depois, tomarem uma ação judicial; e ainda torná-la uma ocasião de separação de sentimentos entre o apóstolo e o corpo dos santos em Corinto. Paulo se identifica com todo o corpo, primeiro forçando-os a se purificarem, e depois cuidando para que todos restaurem ao que pecou, para que houvesse perfeita unidade entre ele e eles. Paulo se associa a eles e os associa a si mesmo, em tudo; e assim, tanto na colocação fora de comunhão quanto na restauração, Paulo os tem com ele. Se a consciência do corpo não é levada à ação que está sendo tomada, a ponto de se purificar pelo ato da excomunhão, não vejo qual benefício se alcança: isso é simplesmente fazer deles hipócritas.
A casa deve ser mantida limpa. O cuidado do Pai pela família é uma coisa, mas outra coisa é o Filho “sobre Sua própria casa”. O Filho confia os discípulos aos cuidados do Pai Santo (Jo 17), isso é diferente de ter a casa em ordem. Em João 15 (ARA), Ele diz: “Eu Sou a videira verdadeira”, “vós os ramos”, “Meu Pai é o Agricultor”, etc., tudo está sob o cuidado do Pai. O Pai purifica os ramos, para que possam dar o máximo de frutos possível. Mas no caso do Filho sobre Sua própria casa, não é individual, mas a casa deve ser mantida limpa. “Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados” etc.
Os Três Tipos de Disciplina
Existem, então, esses três tipos de disciplina:
Disciplina do relacionamento fraternal. Nesse caso eu ajo como uma pessoa injustiçada, mas isso precisa ser feito com graça.
Disciplina do cuidado paternal – o Pai a exercendo com beneficência e ternura, como sobre um filho que anda errado.
Disciplina do Filho sobre Sua própria casa, e onde temos que agir na responsabilidade de manter a casa limpa, que as pessoas devem ter sua consciência de acordo com a casa em que estão – não apenas o indivíduo, mas a casa, o corpo: a consciência do corpo deve agir. A consequência pode ser, pela graça, que o indivíduo seja restaurado, mas isso é um efeito secundário. Quando você chega a esse ponto, há algo além de restaurar; há a responsabilidade de manter a casa limpa – a consciência de todos lá; e isso às vezes pode causar muitos problemas.
O Necessário Espírito Sacerdotal
Quanto à natureza de tudo isso, é no espírito sacerdotal que deve ser conduzida a questão, e os sacerdotes comem a oferta pelo pecado dentro do lugar santo (veja Levítico 10:12-20). Não acho que alguma pessoa ou algum corpo de Cristãos possa exercer disciplina, a menos que tenha a consciência purificada, como tendo sentido, na presença de Deus, o poder do mal e do pecado, como se ele mesmo o tivesse cometido. Então, ele faz isso como sendo o que é necessário para se purificar. Se a questão não for assim tratada, tudo resultará em dano positivo. Qual o caráter da posição que Jesus ocupa agora? A do serviço sacerdotal. E estamos associados a Ele. Se houvesse mais da intercessão sacerdotal, indicada pelo comer da oferta pelo pecado no lugar santo, não haveria abominação tal como a da assembleia assumindo um caráter judicial. Suponha o caso numa família, em que o irmão cometesse algo vergonhoso, isso não seria para amargura e angústia a toda a família? Que ansiedade e dor de coração isso causaria em todos! Será que Cristo não Se alimenta da oferta pela expiação do pecado? Ele não sente a tristeza? Ele não Se responsabiliza com isso? Ele é a Cabeça do Seu corpo, a Igreja: Ele não está ferido e com dor em um de Seus membros? Sim, certamente. Se for um caso de repreensão individual com um irmão por uma falha, não estou apto a repreendê-lo, a menos que minha alma tenha estado em serviço e exercício sacerdotal sobre isso, como se eu mesmo tivesse cometido o pecado. Como Cristo age? Ele pesa isso em Seu coração e intercede por isso para extrair a graça que corrigirá a falha. Assim é com o filho de Deus: ele leva o pecado em seu próprio coração para a presença de Deus; ele intercede junto ao Pai, como um sacerdote, para que a desonra feita ao corpo de Cristo, do qual ele é membro, possa ser corrigida. Esse é, eu creio, o espírito em que a disciplina deve ser exercida. Mas aqui falhamos. Não temos graça para comer a oferta pela expiação do pecado. Venho diante da ação da assembleia e aí encontro ainda mais: ela deveria ir e se humilhar até que tenha se purificado. Para mim, essa é a força de “nem ao menos vos entristecestes”, etc.; não havia de maneira alguma espiritualidade suficiente em Corinto para assumir e levar o pecado. “Vocês deveriam ter se curvado ali, com o coração partido e espírito quebrantado por essa tal coisa não ter sido excluída – com relação à pureza da casa de Cristo”.
Outra atividade do serviço sacerdotal é separar o puro do impuro. Os sacerdotes não deviam beber vinho nem bebida forte, para que se mantivessem em estado espiritual, pelas práticas do santuário, podendo discernir entre o puro e o impuro. Isso é sempre verdade. Ao lidar com o mal, devemos tomar como nosso objetivo, o objetivo de Deus. A casa de Deus é o cenário e o lugar da ordem de Deus. Se é dito que a mulher deve “ter sobre a cabeça sinal de poderio [uma cobertura], por causa dos anjos” (1 Co 11:10), isso é a manifestação da ordem de Deus. Nada deve ser permitido na casa que os anjos não possam vir e aprovar. Tudo está em completa ruína; toda a glória da casa se manifestará quando Cristo vier em glória, e não até que isso aconteça; mas devemos desejar que, na medida do possível, pela energia do Espírito Santo, haja correspondência em espírito e maneira com o que será no futuro. Quando Israel voltou do cativeiro, depois que ‘Lo-Ami’ foi escrito sobre eles, e a glória se afastou da casa, a manifestação pública se foi, mas Neemias e Esdras puderam encontrar a maneira de agir de acordo com a mente de Deus. Essa é a nossa condição atual. Contudo, agora temos o que eles não tinham: sempre fomos um remanescente, começamos no final – “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles” (Mt 18:20). Se todo o sistema corporativo se tornou arruinado, eu me volto a certos benditos princípios imutáveis a partir dos quais tudo deriva. A própria coisa da qual tudo brota, à qual Cristo conectou, não apenas Seu nome, mas Sua disciplina – o poder de ligar e desligar – é a reunião dos “dois ou três”. Esse é o maior consolo possível. O grande princípio permanece verdadeiro em meio a todo o fracasso.
Se nos voltarmos para João 20, descobrimos que, quando Ele enviou Seus discípulos, assoprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, lhes são perdoados; e, àqueles a quem os retiverdes, lhes são retidos”. Não há nada como um sistema corporativo de Igreja aqui; mas a energia do Espírito Santo dando discernimento espiritual aos discípulos, como enviados por Cristo, e agindo em nome de Cristo. Disciplina é uma questão da energia do Espírito. Se aquilo que é feito não for feito no poder do Espírito Santo, então nada é.
Em princípio, o que era necessário foi dito. Não vejo nenhuma diferença, seja nas mãos de um remanescente ou qualquer outra coisa, porque, então, entramos imediatamente na estrutura de um processo judicial – pecadores julgando pecadores. Isso é, em primeiro lugar, uma questão de saber o que a energia do Espírito é para o ministério na casa de Deus. A unanimidade é a unanimidade de ter consciências exercitadas e levadas à disciplina. É uma coisa terrível ouvir pecadores falando sobre julgar outro pecador, mas é uma coisa abençoada vê-los exercitados em sua consciência sobre o pecado que ocorreu entre eles. Isso precisa ser em graça. Não me atrevo a agir, a não ser em graça, além do que poderia desejar ser eu mesmo julgado. “Não julgueis, para que não sejais julgados, porque... com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós” (Mt 7:1-2). Se exercermos julgamento, receberemos julgamento.
A Falta de Pastoreio
Quanto à dificuldade dos santos se reunirem, onde não há pastoreio, minha oração é que Deus levante pastores; mas acredito que onde há irmãos se reunindo e andando juntos em princípios fraternos, desde que mantenham sua posição real e não se empenhem em “fazer igrejas”, eles serão tão felizes quanto os outros em diferentes circunstâncias. Uma coisa pela qual eu oraria, porque amo as ovelhas do Senhor, é que possa haver pastores. Não conheço nada, além da comunhão pessoal com o Senhor, tão abençoado quanto o pastor que alimenta as ovelhas do Senhor – o rebanho do Senhor; mas é o rebanho do Senhor. Eu não encontro nada a respeito de um pastor e seu rebanho; isso muda todo o aspecto das coisas. Quando é percebido que é o rebanho do Senhor que um homem tem que vigiar, que pensamentos de responsabilidade, e que cuidado, que zelo, que vigilância! Não conheço nada mais maravilhoso do que: “Amas-me?... alimenta os Meus cordeiros... alimenta Minhas ovelhas” (JND). Não conheço nada como isso na Terra – o cuidado de um pastor sincero, alguém que pode suportar todo o fardo de tristeza e cuidado de qualquer alma e tratar com Deus sobre isso. Acredito que é o relacionamento mais feliz e abençoado que pode existir neste mundo. Mas não devemos supor que o “Sumo Pastor” não possa cuidar de Suas próprias ovelhas porque não há subpastores. Se houvesse aqueles que se reunissem e esperassem no Senhor, se não fingissem ser o que não são, ainda que não houvesse pastores entre eles, não haveria perigo; eles infalivelmente teriam o cuidado d’Esse Pastor. Não devemos imputar nossa falha a Deus, como se Ele não pudesse cuidar de nós. No momento que o poder no Espírito se vai, entra o poder na carne.
J. N. Darby
[1] N. do A.: Toda a ação contra os mandamentos de Deus, fazendo o que não deve ser feito, é pecado e exige a oferta pela expiação do pecado; mas, havendo ofensas contra um indivíduo, erros cometidos contra o próximo, por quebra de confiança e coisas semelhantes, para estes havia uma oferta pela expiação da culpa. Veja os primeiros sete versículos de Levítico 6.
Estou aprendendo mais sobre esse assunto e aos poucos meditando...
O Senhor é firme, porém bondoso, paciente, amoroso conosco ao nos corrigir.
Então como podemos tão rapidamente agir com rispidez e falta de amor com nossos irmãos?