Lã e Linho - Parte 1/3
- J. G. Bellett (1795-1864)

- 11 de nov.
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Lã e Linho
Parte 1/3
J. G. Bellett
“Não vestirás uma vestimenta de material misto, lã e linho juntamente” - Deuteronômio 22:11 – JND.
A senda da Igreja de Deus é uma senda estreita, tão estreita que o mero senso moral continuamente a interpretará erroneamente. Mas isso deve ser bem-vindo para nós, porque nos diz que o Senhor deseja que seus santos sejam exercitados em Sua verdade e em Seus caminhos, desaprendendo o simples “certo e errado” dos pensamentos humanos, para que possam ser cheios da mente de Cristo.
O caso de Elias julgando os capitães de cinquenta do rei de Israel, mencionado ao longo dos Evangelhos, traz essas reflexões à mente (veja Lucas 9:51-56). O Senhor havia decidido firmemente ir para Jerusalém, ciente de que “devia Ele ser assunto ao céu” (ARA). Algo do pensamento da glória e do reino de Deus movia-se em Sua alma. Creio que a consciência de Sua dignidade pessoal e de Seu elevado destino, como falamos entre os homens, O enchia quando iniciou Sua jornada rumo a Jerusalém. “E aconteceu que, completando-se os dias para a Sua assunção, manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém. E mandou mensageiros adiante de Si”. A expressão de consciente dignidade irrompe aqui, e dá caráter a esse momento, e os discípulos o percebem. Eles parecem captar o tom de Sua mente e, portanto, quando a primeira aldeia por onde passava o caminho de seu ascendente Senhor lhe recusou entrada, eles se ressentem disso e desejam, como Elias em outros tempos, destruir esses atrevidos capitães de Israel.
Essa era a natureza, o senso natural também do certo e do errado. Por que, então, o Senhor o repreendeu? Não havia nisso falta nem de justiça nem de afeição. Chegará o dia em que os inimigos de Cristo, que não quiseram que Ele reinasse sobre eles, serão mortos diante d’Ele. Se pensarmos por um instante na Pessoa e nos direitos d’Aquele que foi assim injustiçado e insultado, não havia nada de injusto na exigência: “queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?”. Tampouco havia uma afeição errada nessa manifestação do coração. O zelo por seu Divino Mestre o impulsionou: essa manifestação pode ser honrada, o senso moral pode justificá-la plenamente; mas Cristo a repreende. “Vós não sabeis de que espírito sois”, disse-lhes o Senhor.
Mas por que, pergunto novamente, essa repreensão? Teria sido porque estavam exigindo além das reivindicações d’Aquele a Quem buscavam vingar? Não, como já dissemos, pois tais reivindicações terão o seu dia; mas os discípulos não estavam na inteligência espiritual do momento que atravessavam. Não tinham “a mente de Cristo”; não discerniram o tempo de modo a saber o que Israel deveria fazer (1 Crônicas 12); não estavam distinguindo as coisas que diferem; não estavam manejando corretamente a Palavra da verdade. Este foi o seu erro: “Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las”. Não foi um princípio errôneo de ação moral que o Senhor descobriu na alma deles, mas a ignorância quanto ao verdadeiro ou divino caráter do momento pelo qual estavam passando. Eles não perceberam, e assim como os daquele tempo, hoje, milhares de discípulos ainda não percebem que a senda de Cristo para a glória não passa pelo julgamento do mundo, mas pela renúncia a ele; não pela justificação própria, mas pela renúncia própria. Esse foi o engano deles, e foi isso que o Senhor repreendeu. Eles naturalmente pensaram que essa indignidade deveria ser reconhecida; que se a perspectiva da glória estava enchendo a mente de seu Mestre, e se eles próprios, no espírito de tal momento, haviam ido adiante de Sua face para preparar o Seu caminho, tudo o que estivesse no caminho certamente deveria ser removido. A natureza julgou dessa forma; e a natureza, julgando assim, seria justificada pelo senso moral do homem.
Mas a mente de Cristo tem seu modo peculiar, e nada guia o santo plenamente senão ela: a analogia não basta; é preciso a mente espiritual para provar e desafiar até mesmo as analogias. Certas correspondências foram notáveis aqui – Elias estava a apenas um ou dois estágios da glória, prestes a ser "recebido acima" (TB), quando feriu repetidas vezes os capitães e seus cinquenta. Ele estava num monte cheio de grandes expectativas, podemos dizer, e os carros e cavaleiros de Israel e sua jornada celestial estavam diante dele em sua visão. A alma de seu Mestre, aos olhos dos discípulos naquela ocasião, parecia estar muito em companhia da de Elias. Mas as analogias não bastam, e o uso delas aqui estava confundindo tudo, tirando o Senhor Jesus de Seu dia de graça e levando-O para o tempo de Seus juízos; Convidando-O ou instando-O a agir no espírito dos tempos de Apocalipse 11, quando Ele estava na hora de Lucas 4.
As testemunhas de Apocalipse 11 podem ir para o céu através da destruição de seus inimigos, com fogo saindo de sua boca para consumir aqueles que as ferem, como no exemplo de Elias; mas analogias não são a regra. Elas devem ser desafiadas por aquela “mente de Cristo” que distingue as coisas que diferem e que ensina, à luz da Palavra, que Jesus vai para o céu através da salvação e não da destruição dos homens; através de Sua renúncia ao mundo e não de Seu julgamento sobre ele. Elias vingou-se dos capitães atrevidos e então foi para o céu; as testemunhas subirão ao céu, e seus inimigos as contemplarão: mas Jesus assume a forma de Servo e é obediente até a morte, e então Deus O exalta soberanamente. E assim é o santo, e assim é a Igreja. “Vós sois os que tendes permanecido Comigo nas Minhas tentações. E Eu vos destino o reino, como Meu Pai Mo destinou”.
Aqui estava o erro; aqui estava o não saber de que espírito eles eram. A analogia favorecia fortemente o movimento da mente deles. O senso moral, que julga segundo os pensamentos do homem, e não à luz dos mistérios de Deus, justificava isso. Mas Aquele que divinamente distingue as coisas que diferem, repreendeu isso: “Vós não sabeis de que espírito sois”. O caminho dos discípulos aqui teria perturbado tudo, contrariando todo o propósito de Deus. Eles me lembram os servos na parábola do joio. Os discípulos estavam certos segundo os homens, assim estavam aqueles servos também. Não é apropriado arrancar o joio? Não é o joio um obstáculo, dividindo a força do solo com a boa semente, enquanto ele próprio não serve para nada? O senso comum do homem, o julgamento moral correto, diria tudo isso, mas a mente de Cristo diz exatamente o contrário: “Deixai crescer ambos juntos até à ceifa”. Cristo julgou somente segundo os mistérios divinos. Foi isso que formou a mente do Mestre, perfeita como era; E é isso que deve formar a mente no santo. Deus tinha propósitos a respeito do campo. Uma colheita estava por vir, e anjos seriam enviados para ceifá-la, e então um fogo seria aceso para o joio já separado; mas ainda, na hora de Mateus 13, não havia anjos trabalhando na colheita no campo, nem fogo aceso para o joio, mas tudo era a graça paciente do Mestre. O Senhor quer o campo limpo por enquanto. Os mistérios de Deus, os pensamentos e propósitos aconselhados do céu, preciosos e gloriosos além de toda medida, exigem isso; e nada é certo senão o caminho que é trilhado na luz do Senhor, no conhecimento dos mistérios do reino dos céus.
Nem tampouco a Igreja há de ir ao céu através de um mundo purificado, regulado ou adornado, assim como Cristo não teria ido para o céu através de um mundo julgado. Isso deve ser bem ponderado; pois qual é o propósito da Cristandade? Justamente contradizer, na prática, tudo isso. A Cristandade pretende regular o mundo, manter o campo limpo, fazer com que o caminho para o céu e a glória passe por um mundo bem ordenado e ornamentado. Ela colocou a espada nas mãos dos seguidores de Cristo. Não esperará pela colheita nem irá "para outra aldeia". Ela vinga as injustiças em vez de sofrê-las. Ela ordena a Igreja segundo os princípios de uma nação bem administrada, e não segundo o modelo de um Jesus rejeitado pela Terra. Ela está repleta dos pensamentos mais falsos; julga segundo o senso moral do homem, e não à luz dos mistérios de Deus. Ela é sábia a seus próprios olhos.
Sei perfeitamente que, em meio a tudo isso, batem mil corações sinceros em seu amor por Cristo; mas eles não sabem que tipo de espírito são. Sei que o zelo, se for por Cristo, ainda que mal direcionado, é melhor do que frieza de coração ou indiferença quanto aos Seus direitos ou às ofensas dirigidas a Ele. Mas ainda assim, o único caminho perfeito é aquele que é trilhado diante dos olhos do Senhor, no entendimento dos mistérios de Deus, do chamado de Deus e das direções da energia do Espírito, e não meramente segundo os costumes ou os ditames da moral e dos pensamentos dos homens. E o chamado de Deus agora exige que o campo com o joio seja deixado sem purificação, que a indignidade dos samaritanos seja deixada sem vingança, que os recursos e a força da carne e do mundo sejam rejeitados em vez de usados, e que a Igreja alcance os céus, não através do julgamento do mundo por suas próprias mãos, mas pela renúncia a ele em seu coração e pela separação dele em companhia com um Mestre rejeitado.
“Quem Comigo não ajunta, espalha” (Lucas 11:23), ou seja, quem não trabalha segundo o propósito de Cristo está, na verdade, piorando a situação. Não basta trabalhar com o nome de Cristo: nenhum santo consentiria em trabalhar sem isso; mas se não trabalha segundo o propósito de Cristo, ele está espalhando. Muitos santos estão agora empenhados em corrigir e adornar o mundo, transformando a Cristandade numa casa varrida e adornada; mas, como esse não é o propósito de Cristo, ela está auxiliando e promovendo o avanço do mal. Cristo não expulsou o espírito imundo do mundo. Ele não tem tal propósito no presente. O inimigo pode mudar sua forma de agir, mas continua sendo tanto “o deus” e “príncipe deste mundo” como sempre foi. A casa ainda lhe pertence, como na parábola (veja Lucas 11:24-26). O espírito imundo havia saído: isso era tudo; ele não havia sido expulso pelo homem mais forte; de modo que seu direito sobre ela era claro. E ele retorna, e tudo o que encontra lá só faz aumentar o seu interesse pela casa. Ele a encontra varrida e adornada; de modo que retorna com muitos espíritos semelhantes, e assim torna seu último estado pior do que o primeiro.
Erros desse tipo são erros muito antigos. Davi errou dessa maneira quando propôs construir uma casa para o Senhor; mas foi um erro, embora cometido com um desejo correto em seu coração. O tempo de construir uma casa para o Senhor ainda não havia chegado, porque o Senhor ainda não havia construído uma casa para Davi. A terra ainda estava contaminada com sangue; e enquanto não fosse purificada, não haveria lugar para o descanso e o reino do Senhor. Davi, portanto, errou gravemente, não por duplicidade de ânimo, mas por ignorância. O erro de Davi foi este: achar que o Senhor poderia tomar o Seu trono na Terra antes que a Terra fosse purificada.
Os servos da parábola erraram, em outra direção, ao fazer da Igreja o instrumento de purificação da Terra ou do mundo. Eu poderia dizer, na linguagem da ordenança levítica, que Davi estava prestes a vestir “uma vestimenta de material misto” (JND), mas o Senhor o impediu. O movimento do seu coração – na medida em que expressava a si mesmo – era aceitável ao Senhor, mas ainda assim foi impedido e frustrado. Tudo isso nos ensina o quanto o Senhor é zeloso para que os Seus princípios sejam observados e para que a posição em que Ele estabeleceu os Seus servos e Suas testemunhas seja mantida; sim, até mesmo o desejo mais afetuoso e zeloso do santo, embora seja valorizado pelo Senhor e receba sua recompensa ou aceitação pessoal, jamais poderá reconciliar a mente do Senhor com o abandono dos Seus pensamentos e propósitos. Tudo seria confusão. Os pensamentos de Davi, por mais inocentes que fossem e, de certa forma, passíveis de aprovação por parte de Deus, teriam confundido tudo, produzindo este estranho resultado: o Senhor assumindo o Seu trono em um reino impuro e permitindo que o Seu servo Lhe desse descanso antes mesmo de Ele próprio ter dado descanso ao Seu servo! Que confusão isso teria sido! Que mau testemunho teriam produzido esses princípios mistos! Se isso tivesse sido permitido, quem poderia ter reconhecido no resultado a graça ou a glória do Deus de Israel?
A repreensão de Pedro em Antioquia foi mais taxativa; pois Pedro errou, não como Davi, por ignorância, mas por aquele ocasional temor do homem, que, como nos é ensinado e como experimentamos, “armará laços”; e foi algo pior do que confusão, foi perversão (em Deuteronômio 20:19-20 temos uma ordenança contra a perversão, ou seja, contra o uso indevido das coisas). Mas mesmo que se trate apenas de confusão, e que tenha sido causada pelo servo mais querido e amado, não deve ser permitida, como demonstra o caso de Davi; assim como em seu outro ato de trazer a arca de Quiriate-Jearim. A confusão ali não se tornou desculpável por toda a sinceridade e alegria religiosa que a acompanharam (1 Crônicas 13): isso não seria possível. Não se devia ceder a isso nem por um momento, por mais aceitável que fosse diante de Deus o movimento do coração de Davi, esses caminhos deviam ser resistidos, porque o caminho, o propósito, o conselho e os pensamentos do Senhor são preciosos aos Seus olhos e devem permanecer para sempre. Não se trata de Davi ou Pedro serem homens de princípios mistos, como se diz, ou de estarem usando, como menciona a ordenança, vestes de lã e linho; mas esses exemplos na história deles ilustram uma séria verdade, que deve ser muito lembrada: que o Senhor defenderá Seus próprios princípios, mesmo diante de Seus servos mais queridos; que Ele deve resistir e resistirá aos movimentos do coração deles, se eles obscurecerem ou perturbarem Seu propósito e Seu testemunho, ainda que tais movimentos tenham um caráter pessoal e moral, que Ele possa aceitar e das quais Se deleitar neles.
Mas, além dos casos de Davi, Pedro e dos discípulos em Lucas 9, os quais, em zelo equivocado e mal aplicado em relação ao Senhor a Quem amavam, teriam vingado as afrontas feitas a Ele com uma afeição verdadeira e justa, há uma geração que se mostra afastada do caminho de Deus, por causa da duplicidade de ânimo. Tal geração pode ser rastreada por toda a Escritura, um povo de princípios mistos, como dizemos, que veste roupas de lã e linho, contrariamente ao chamado de Deus e aos puros preceitos da Sua casa. Observar tal geração pode ser humilhante para alguns mais do que para a maioria dos outros, mas isso traz proveito para a alma e é oportuno neste momento.
Ló esteve associado ao chamado de Deus. Assim como Abraão, seu tio, ele deixou a Mesopotâmia e, após a morte de Terá, seu avô, veio com Abrão para Canaã. Era um homem justo, e não havia mácula visível em sua conduta. Abraão revelou os caminhos da natureza, recuperando-se repetidamente, com vergonha também, do laço do Egito e de Abimeleque. Mas Ló não foi repreendido dessa forma durante todo o tempo em que peregrinou em Sodoma. Lemos apenas que sua alma justa foi afligida pela vida dissoluta dos homens abomináveis. Apesar disso, ele era tristemente da geração da qual estou falando. Se a roupa de Abrão se sujava de vez em quando, não era uma “roupa de diversos estofos misturados”, mas a roupa de Ló era “de lã e linho”. Ele foi infiel ao chamado de Deus: tornou-se cidadão quando deveria ter sido apenas um peregrino, escolhendo planícies bem regadas e morando em uma casa na cidade, enquanto a testemunha de Deus peregrinava por toda a região, de tenda em tenda e de tabernáculo em tabernáculo. Poucos erros são registrados sobre Ló; mas e daí? Ele foi um homem de princípios mistos durante toda a sua vida, enquanto Abrão foi fiel ao chamado de Deus durante toda a sua vida. E sua vida de falsos princípios leva Ló a sofrimentos que são sua vergonha, e essa é a verdadeira miséria do sofrimento. Ele foi levado cativo enquanto vivia nas planícies de Sodoma e esteve perto da destruição depois de se mudar para a cidade de Sodoma, e ele ainda é, e sempre tem sido na Igreja, o testemunho de alguém salvo, é verdade, mas “como que pelo fogo”. Ele não tinha consolo em sua alma; sua alma justa era afligida dia após dia. Isso é contado sobre ele, mas não há brilho nisso: nenhum gozo, nenhuma força, nenhum triunfo de espírito é relatado dele.
Os anjos mantiveram muita reserva em relação a ele, enquanto o Senhor dos anjos estava em proximidade e intimidade com Abraão. Ele teve que escapar tendo sua vida como um despojo, enquanto Abraão estava no alto, contemplando o juízo à distância. E o que é cheio de significado, observamos, é que depois de ter seguido seu próprio caminho e se tornado um homem de princípios mistos, desviando-se da senda onde o chamado de Deus o teria mantido, ele e Abraão não tiveram comunhão. Abraão correu em seu auxílio, no dia em que seus princípios o colocaram em perigo; mas não há comunhão entre eles. Eles não podiam se encontrar em espírito. O santo de Deus o reconhecerá como seu parente e prestará o devido serviço ao parente; mas não há comunhão presente entre eles. E este não é um caso incomum até mesmo no dia de hoje. Assim foi Ló. Em vez de confirmar seu chamado e eleição, ele é alguém que o povo de Deus recebe pelo testemunho extraordinário do Espírito Santo, e não sobre a credibilidade necessária e abençoada de seu chamado assegurado por Deus, ou como alguém daquele povo de quem Paulo pôde dizer: “Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus”.
A natureza prevalece, de forma triste e variada em todos os santos de Deus registrados na Escritura; em alguns mais, em outros menos, assim como a frutificação do Espírito se manifesta neles em afeições e serviços, em alguns trinta vezes, em outros sessenta e em outros cem. Mas isso é diferente de serem homens de princípios mistos. Assim foi com Davi. A natureza prevaleceu nele em alguns momentos, mas ele nunca foi um homem de princípios mistos. Ele nunca se envolveu deliberadamente em uma relação que fosse infiel ao chamado de Deus sob o qual ele deveria agir. Seu caráter foi formado por esse chamado, e seus caminhos estavam de acordo com ele, mas não foi assim com seu amigo Jônatas; sua vida não foi formada pelo chamado de Deus e pela energia do Espírito operando sob o princípio desse chamado. Ele agiu com nobreza e graça em alguns momentos, mas ainda assim não era um homem separado. Ele não foi fiel aos princípios puros de Deus manifestados naquele dia. Ele era um homem de fé e de muitas ternas afeições espirituais, que lhe garantem, sem reservas, um lugar nas lembranças dos santos. Mas, apesar disso, ele não estava onde o chamado de Deus o teria levado. A corte de Saul era então um lugar contaminado, até mesmo apóstata. Deus estava com Davi nesse tempo. A glória estava no deserto com ele; as cavernas e os esconderijos da Terra a ocultavam naquele dia. O éfode estava com Davi, o sacerdote, a espada da força de Deus, a testemunha da vitória. O trigo e a promessa da terra também estavam com ele, aqueles que conquistam um nome na caverna de Adulão, ou no dia da vingança em Ziclague. Tais filhos de Israel, como esses, que brilham depois na corte e no arraial do reino, estavam todos com Davi naquela época. O chamado de Deus foi então dirigido às cavernas e aos esconderijos da Terra, com o filho de Jessé, e a energia do Espírito operava ali; mas Jônatas não estava lá.
Essa é a triste história. Jônatas não estava onde a glória estava, onde o sacerdote com o éfode estava, onde o homem rejeitado segundo o próprio coração de Deus estava, onde toda a promessa do reino vindouro estava. Essa é a triste história. Jônatas era uma pessoa amável, havia praticado alguns nobres feitos e respirava algumas afeições celestiais; e até o fim, podemos ter certeza, Davi viveu em seu coração; e podemos ter a mesma certeza de que esse mesmo coração estava afligido por muitas dúvidas a respeito de seu próprio pai. Ele nunca deu a Davi nada senão regozijo; ao passo que sabemos que aqueles que acompanhavam Davi, mesmo em suas aflições, foram, por vezes, uma vergonha e aflição para ele. Mas ainda assim, a posição de Jônatas não era fiel ao chamado de Deus naquele dia. Essa posição o mantinha afastado de tudo o que era de Deus então, embora ele tivesse o Senhor consigo pessoalmente. Até cair no Monte Gilboa, ele esteve com o arraial e com a corte que caíram ali com ele, desonrados e derrotados como estavam, tendo já antes mesmo perdido a glória, e tudo o que era de Deus quanto à nação se havia retirado deles.
Ele ilustra uma situação comum. Acaso seria ignorância do chamado de Deus ou duplicidade de ânimo? Não ousaremos afirmar, mas ainda hoje, como Jônatas, há muitos santos, queridos ao nosso coração e que se destacam em graças pessoais acima da grande maioria da época, mas que se encontram afastados do lugar onde opera a energia do Espírito, segundo a ordem da dispensação. Eles realizam feitos nobres e generosos individualmente; mas a sua ligação é a sua desonra, como foi a de Jônatas – ligados a um mundo que em breve enfrentará o juízo, e em cortes e arraiais que hão de jazer no meio dos incircuncisos, com aqueles que serão mortos à espada. “Não o noticieis em Gate, não o publiqueis nas ruas de Ascalom”. Jônatas ilustra isso, e isso é amplamente conhecido até hoje. Mas Jônatas não pode sancionar aquele lugar; a presença de Jônatas não tornou o arraial ou a corte de Saul diferentes do que eram. A única impressão que a alma tem de Ló em Sodoma é a de um Ló contaminado, e não a de uma Sodoma sancionada e purificada. De acordo com o que está escrito em Ageu: “Se alguém leva carne santa na orla das suas vestes, e com ela tocar no pão, ou no guisado, ou no vinho, ou no azeite, ou em outro qualquer mantimento, porventura ficará isto santificado? E os sacerdotes responderam: Não”. Mas “Se alguém que for contaminado pelo contato com o corpo morto, tocar nalguma destas coisas, ficará ela imunda? E os sacerdotes responderam, dizendo: Ficará imunda”.
Existem, porém, “as coisas que diferem”[1], e a alma exercitada por Deus deve distingui-las. Há uma roupa manchada, que, no entanto, ao mesmo tempo, não é uma roupa mista, uma roupa de “diversos estofos”, de “lã e linho”. Nosso caminho sob a direção do Espírito é manter nossas roupas imaculadas; e qualquer coisa diferente ou inferior a isso não é o caminho da comunhão com o Senhor. Mas ainda assim, uma roupa manchada não é uma roupa mista; nem deve ser confundida uma roupa que tem, aqui e ali, um fio de outro tipo, com uma roupa cuja própria textura é tecida segundo o princípio de “lã e linho”. As Escrituras, sempre frutíferas e perfeitas, apresentam caracteres formados pelo que tem sido chamado de “princípios mistos” e caracteres que ocasionalmente se tornam contaminados por tais princípios, mas não são formados inteiramente por eles.
[1] N. do T.: Na versão King James há uma anotação em Romanos 2:18 que sugere que a frase “aprovas as coisas excelentes” também pode ser traduzida como “discernes as coisas que diferem”.
A vida de Ló, como temos visto, foi formada inteiramente por princípios mistos. Havia duplicidade de espírito em Ló; não digo isso com a mesma clareza que digo em relação a Jônatas; Mas ainda assim, a vida de cada um deles, do princípio ao fim, quando o cenário da tentação se instalou, foi manchada pela ligação com o mal. Ló, embora associado ao chamado de Deus, era um homem da Terra; Jônatas, embora testemunhando as aflições de Davi e as injustiças feitas a ele, continuou a defender os interesses do perseguidor até o fim. A vida deles foi, portanto, moldada, do princípio ao fim, por conexões que não eram fiéis quanto ao caminho de Deus e à presença da glória. As vestes de cada um deles eram feitas de diversos tipos de materiais, de lã e linho.
Mas observe Jacó, em contraste, e nele encontramos um homem de outra geração: ele era um homem cauteloso, que tinha seus temores, planos e cálculos mundanos; e estes desfiguraram grandemente várias passagens de sua vida. A construção de uma casa em Sucote, a compra de uma parte do campo em Siquém, foram coisas incompatíveis com a vida de peregrino, com a vida na tenda, que um filho de Abraão era chamado a conhecer. Mas Jacó não deve ser comparado a Ló; Sua vida não foi moldada por Sucote e nem por Siquém, embora o vejamos ali, e fora de seu caráter, mas sim como um estrangeiro diante de Deus, na Terra. E nos últimos dias de sua peregrinação, quando estava no Egito, apesar de muitas circunstâncias ao seu redor que o tentavam a agir de outra forma, temos muitos belos testemunhos do estado saudável e restaurado de sua alma.
J. G. Bellett


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