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Os Evangelistas - Parte 7/22 (Lucas caps. 5-7)

Foto do escritor: J. G. Bellett (1795-1864)J. G. Bellett (1795-1864)

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ÍNDICE


 

Os Evangelistas - Meditações Sobre os Quatro Evangelhos

J. G. Bellett

Parte 7

 

Lucas 5

 

Entramos agora no quinto capítulo, cujos materiais, geralmente, encontramos em outros Evangelhos. Eu notaria especialmente apenas o que é característico.

 

Posso observar novamente que nosso evangelista não está muito ocupado com meras circunstâncias (como a ordem do tempo e coisas semelhantes), porque ele trata mais com homens e com princípios. E assim seria entre nós. Se alguém estivesse narrando a outro alguns acontecimentos para familiarizá-lo com os eventos, ele teria o cuidado de anotar com precisão os detalhes de tempo e lugar; mas se ele estivesse usando os eventos apenas com o propósito de ilustrar princípios ou reforçar verdades, ele seria menos cuidadoso quanto a tais coisas. Assim, temos uma cena neste capítulo que, em termos de tempo, precedeu muito do que já tivemos no capítulo anterior. O chamado de Simão para ser um pescador de homens, por exemplo, na verdade precedeu a cura da sua sogra; mas aqui o chamado vem depois (veja Mateus 4; 8; Marcos 1). Mas isso não importa para Lucas. Seu propósito não é determinar o que veio primeiro, mas nos dar princípios; dar-nos Deus e o homem. E, consequentemente, embora ele seja indiferente às circunstâncias, revela, no chamado de Simão, grandes princípios morais que os outros evangelistas não registraram.

 

E realmente essa revelação é impressionante. Ela nos dá uma visão do homem sendo realmente trazido sob o poder de Deus. Não havia nada em uma pesca abundante, mesmo que fosse tão grande e inesperada quanto pudesse ser, que naturalmente se conectasse com a convicção do pecado. Mas no caminho de Deus havia. Pois é sempre a descoberta de Deus que leva ao arrependimento ou à verdadeira convicção do pecado. É somente na luz de Deus que podemos nos conhecer devidamente. Era o julgamento comum de todos aqueles que, antigamente, possuíam o temor de Deus, que não podiam vê-Lo e viver. Eles carregavam essa consciência com eles desde que Adão se retirou da presença de Deus entre as árvores do jardim. Manoá julgou que ele deveria morrer porque tinha visto Deus. Gideão esperava o mesmo. Ezequiel caiu prostrado no chão, e a formosura de Daniel foi transformada em corrupção quando eles entraram em contato com a glória. Isaías aprendeu a impureza de seus lábios, quando viu o Rei, o Senhor dos exércitos. Isso era conhecerem a si mesmos corretamente, não por si mesmos nem entre si mesmos, mas por Deus. Eles descobriram que estavam aquém ou destituídos da Sua glória (Rm 3:23).

 

Assim acontece agora com Pedro. A glória tinha chegado muito perto dele. Outros poderiam não tê-la percebido. O que era uma grande pescaria para pescadores comuns senão um arremesso de sorte? Mas um pequeno assunto falará grandes coisas no ouvido de uma alma que Deus está guiando. Um buraco na parede é o suficiente para mostrar a um profeta grandes abominações; e para tal uma nuvem não maior que a mão de um homem está cheia das obras e louvores de Deus. Aquele que podia comandar a plenitude do mar estava agora diante de Pedro. Uma pesca abundante é agora a glória para um pecador guiado pelo céu; e assim que a glória está ao seu lado, como esteve em outros no passado, Pedro aprende sobre si mesmo. Seus olhos veem Deus, e Pedro abomina a si mesmo no pó e nas cinzas.

 

Este conhecimento de nós mesmos pela luz de Deus forma o princípio do arrependimento. Podemos ler muitas páginas manchadas em nossa história, e ficar tristes e envergonhados disso; mas ler a nós mesmos à luz da glória e presença de Deus leva àquele arrependimento que o Espírito opera. Aprendemos que somos morenos, quando o Sol resplandece sobre nós (Cantares 1), quando o resplendor ardente da glória se levanta sobre nós, como aqui sobre Pedro.

 

E deixe-me acrescentar que, assim como aprendemos a nós mesmos dessa maneira, também aprendemos a Deus. Assim como minhas transgressões e loucuras podem me dizer muito sobre mim mesmo, mas não me conhecerei devidamente e completamente até que me veja na luz da glória de Deus, assim as obras de Deus podem me dizer muito sobre Ele, Seu poder e Divindade, mas não O conhecerei realmente como Ele é até que O veja pelas trevas da minha própria iniquidade. Então é que aprendo Deus de fato, quando O vejo na face de Jesus Cristo, provendo para mim, um pecador, e removendo minhas trevas e vergonha para sempre nas abundantes riquezas de Sua graça. Foi assim que Adão aprendeu a Deus. Os seis dias de trabalho da mão de Deus não deram a Adão tudo o que Deus tinha para ele, nem disseram a Adão tudo o que Deus era para ele. Foi sua transgressão que extraiu todo o tesouro. “Ele esmagará tua cabeça, e tu Lhe esmagará o calcanhar” (JND), era a palavra que contava o que Deus era. A Semente da mulher era um segredo que a criação não havia declarado; era um tesouro mais rico do que todo o fruto do Éden, o qual, a graça abundante sobre o pecado e não o trabalho das mãos criadoras, havia tornado de Adão. Adão então aprendeu Deus de fato, e o pecador assim O aprende agora. E esta é a sequência do mistério da morte e da vida – aprendemos a nós mesmos, todas as trevas que somos, na luz da glória divina; aprendemos a Deus, toda bondade que Ele é, pelo mal do nosso próprio pecado.

 

Benditas verdades são estas às quais nosso evangelista aqui nos conduz. A cena é peculiar a ele, mas totalmente no caminho do Espírito, que por ele traça nosso Senhor como o Grande Mestre, lidando com os corações e consciências dos homens, e com verdades e princípios. E sobre esta cena eu observaria ainda, que o fato de os barcos quase irem a pique aqui não foi motivo para Pedro ficar alarmado, como foi depois (Mt 14). Aqui ele não sente, ou pensa sobre isso, pois sua alma estava cheia de outros pensamentos, e seus olhos completamente com outros objetos, de modo que ele não tinha lugar para pensamentos de si mesmo, ou para o medo. Pois esta é a verdadeira cura da dúvida e do medo e de toda confusão. E que pena que este novo senso da plenitude que está em Jesus deva sempre esfriar. Foi depois disto que Pedro temeu as águas, porque foi depois disto que sua visão estava menos ocupada com Cristo. Oh, a vergonha e a tristeza de tudo isto! Mas também não falharam os mais brilhantes dos nossos companheiros, queridos irmãos? Até mesmo Davi, que está entre nós (os redimidos do Senhor) em um lugar tão querido e honrado, quando um jovem na batalha, podia dizer até mesmo a um gigante: “Hoje mesmo o SENHOR te entregará na minha mão”; mas depois disse em seu coração: “Ora, ainda algum dia perecerei pela mão de Saul”. Que bom para nós, de fato, que Alguém permaneceu na vida e na morte para o perfeito agrado e louvor de Deus. A mão de Saul, que Davi temia, não era tão grande quanto a mão de Golias, que Davi desprezava; mas então, Cristo não era tão grande e pleno diante dos olhos da fé de Davi depois, como Ele tinha sido antes no vale de Elá.

 

Mas não entro nos detalhes adicionais deste capítulo. Nós os temos de forma geral em outros Evangelhos. Há, no entanto, no final dele, algumas palavras que são peculiares ao nosso evangelista, e que eu, portanto, gostaria de observar. “Ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo, porque diz: Melhor é o velho”.

 

Isto ainda está no caráter deste Evangelho, pois ele revela outro grande segredo na natureza humana, o poder dos hábitos e associações do homem, que, humanamente, tanto impede a operação de Deus em sua alma. Temos bebido o vinho velho (aquele que a carne tem nos fornecido desde o nosso nascimento), e nosso apetite pelo vinho novo (aquele que o Filho de Deus trouxe Consigo) está estragado. Todos nós estamos conscientes disto. “Pode o etíope mudar a sua pele ou o leopardo as suas manchas?” diz o profeta. “Nesse caso também vós podereis fazer o bem, sendo ensinados [acostumados – ARA] a fazer o mal”. E aqui o Grande Profeta, em sabedoria semelhante, nos adverte, que “ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo”.

 

E essa é, amados, uma solene advertência. Que todas as coisas são possíveis para Deus, é a coisa mais verdadeira, e Ele dá mais graça. Mas ainda assim fazemos bem em tomar cuidado para não nos deleitarmos no vinho velho. Cada pensamento que permitimos, cada desejo que nos concedemos, tem o sabor do velho ou do novo. É um gole (por menor que seja), mas ainda assim é um gole de um ou de outro. E isso deixa uma palavra solene atrás de si no coração e na consciência de cada um de nós. Em que você está pensando? O que você está saboreando agora? Podemos dizer à nossa alma ao longo do dia. É provisão para a carne que você está fazendo? Ou é uma caminhada no santuário? Vem do céu ou do inferno? E muitas vezes o santo tem que aprender, para sua tristeza e vergonha, no final, o tipo de provisão que ele estava fazendo pelo caminho. O patriarca não estava embriagado inicialmente, mas ele se tornou um lavrador, plantou uma vinha e então bebeu do vinho. A alma pode responder indignada “É teu servo um cão, para fazer essa... coisa?” (JND); mas se os temperamentos ocultos do cão forem permitidos, sua fúria ativa irromperá com o tempo. “Andai no Espírito”, é a segurança divina, “e não cumprireis a concupiscência da carne”. E certamente, amados, um pouco dessa caminhada deve nos capacitar a mudar o discurso e dizer: O novo é melhor. É isso que nosso bendito Senhor deseja. O hábito santo e vigilante de negar a carne, seus temperamentos e suas concupiscências, manterá o apetite fresco e pronto para este vinho novo e melhor; e que a mão gentil e forte do Espírito conduza nossa alma diariamente a tudo isso!

 

Lucas 6

 

Aqui temos novamente o que temos em Mateus e Marcos. Mas observo que a nomeação dos apóstolos é feita após a oração; e isso não é notado pelos outros evangelistas. Como, também, em outras ocasiões, essa mesma menção do Senhor em oração é peculiar a Lucas. Mas isso ainda nos mostra que o Senhor está diante de nós mais como um Homem, do que como um Judeu, ou como o Filho de Deus. Pois um Judeu, considerado como estando sob a lei, não era propriamente chamado a orar, pois a lei o colocava em sua própria força; mas a oração sendo a expressão de dependência, é o primeiro dever de uma criatura como o homem, que deve aprender a esperar em Deus como sua suficiência e força.

 

Esta ordenação dos Doze os vinculou, de agora em diante, de maneira peculiar, em torno da Pessoa do Senhor. Pois eles deveriam estar com Ele (Marcos 3:14). Sobre o qual, no entanto, eu sugeriria um pensamento ou dois, que acredito que a alma pode usar para santo proveito.

 

Há uma diferença entre intimidade e familiaridade. Posso estar familiarizado com a condição e as circunstâncias em que outro comumente anda, mas ter pouquíssima intimidade verdadeira com ele mesmo – como no caso dos servos. E isso tem sua forte ilustração na história do Senhor.

 

O centurião, a siro-fenícia, ou Maria, a irmã de Lázaro, estavam comparativamente pouco com Ele. Eles não são vistos em companhia d’Ele onde quer que Ele fosse, mas cruzam Seu caminho, para dizer o máximo, apenas ocasionalmente. Mas quando são levados a tratar com Ele, eles o fazem com a inteligência mais brilhante e abençoada. Eles mostram que O conhecem – Quem e o que Ele realmente é. Eles não cometem erros sobre Ele; enquanto até mesmo os apóstolos, que estavam com Ele dia após dia revelavam, repetidamente, a ignorância e a distância da mera natureza.

 

Não há uma lição nisso para nós? Não há um medo, de que a familiaridade com as coisas de Cristo seja muito maior do que o verdadeiro conhecimento d’Ele mesmo por parte da alma? Eu posso estar frequentemente, por assim dizer, lidando com essas coisas. Posso estar lendo os livros que falam sobre Ele. Posso estar ocupado nas atividades que têm Seu serviço como objetivo. Posso falar, e ainda, escrever sobre Ele, enquanto outros, como o centurião, podem estar bem afastados de tudo isso; mas seu crescimento no conhecimento divino e no vivo entendimento d’Ele pode ser muito mais avançado. Saul tinha Davi por perto, em sua casa mesmo, a seu comando, como seu menestrel, quando ele precisava dele ou o desejasse; mas Saul não conhecia Davi.

 

Certamente esta é uma lição para nós, amados. A multidão que acompanhava o Senhor e observava Seus passos deve ter sido capaz de dar até mesmo a Maria de Betânia, se ela tivesse buscado, muitas informações sobre Ele. Centenas na terra, assim como os Doze, poderiam ter contado a ela o que Ele estava fazendo, por onde Ele estava peregrinando, os discursos que Ele havia proferido e os milagres que Ele havia realizado. Informações como essas eles tinham em abundância, e ela as possuía apenas de maneira esparsa, exceto quando ela era devedora a eles por isso. Mas tudo isso, eu não preciso dizer, os deixou muito atrás dela no verdadeiro conhecimento d’Ele. E não é assim ainda? Quantos de nós podemos dar informações sobre as coisas de Cristo e responder perguntas corretamente, enquanto a alma do instruído se assenta e se deleita com as mesmas coisas de forma muito mais rica. Pois o conhecimento que uma Maria pode extrair a partir do relato de uma multidão, até mesmo dos lábios dos apóstolos, muitas vezes se torna outra coisa para ela, do que havia sido anteriormente para eles. Uma pobre estranha, caminhando de forma modesta, mas ainda assim sincera, em direção a Jesus, no meio da multidão, pode envergonhar os pensamentos daqueles que tinham o direito de estarem mais próximos d’Ele; sim, do próprio Pedro (Lucas 8:45).

 

Não precisamos tanto cobiçar informações sobre Ele, mas sim de poder para usar divinamente aquilo que sabemos; para transformar isso, por meio da energia do Espírito, em uma questão de comunhão e de alimentação e vivificação das nossas afeições renovadas. Então, e somente então, será aquilo que nosso Deus gostaria que fosse. Colossenses 3:16 pode nos ensinar que, enquanto indagamos por conhecimento e acumulamos a palavra de Cristo, o material de toda sabedoria, devemos cuidar para nutrir as afeições mais simples da alma. O salmodiar no coração deve ser a companhia da palavra de sabedoria e conhecimento que habita em nós (Ef 5:19). Se não for assim, o conhecimento será insuficiente em seu sabor e em seu poder de revigorar tanto a nós mesmos quanto aos outros.

 

Ao mesmo tempo, deixe-me dizer, isso não deve nos levar a desistir da ação, ou, se for o caso, da companhia diária com os interesses e o povo de Jesus no mundo. Perfeição é a semelhança com Ele mesmo; e naquele Padrão vivo vemos isto – ocupado em serviço onde ou quando uma necessidade o chamasse, mas o tempo todo, em espírito, no profundo senso da presença de Deus. Somente aqui está o caminho que é totalmente de acordo com o Grande Original. Como alguém docemente diz, pressionando a alma com essa graça da comunhão combinada com o serviço – “Como uma criança, atenta ao que Tu irás dizer, Vá em frente e Te sirva enquanto é dia, Nem deixe meu doce retiro.”

 

Isto, porém, somente quando passarmos adiante – se o Senhor nos der algum proveito com isso.

 

As santas instruções que obtemos no progresso deste capítulo são encontradas no sermão do monte em Mateus. Não precisamos determinar se o Senhor as entregou em duas ocasiões diferentes, uma das quais nos é dada por um evangelista, e a outra pelo outro, ou se a mesma ocasião é registrada de forma diferente por eles. [No entanto, tem sido observado por outros que o sermão em Mateus foi proferido num monte, e esse num lugar plano (Mateus 5:1; Lucas 6:17). E são dados exemplos do Senhor pregando as mesmas coisas em momentos diferentes. Compare Mateus 9:32-34; 12:22-24; 16:21; 17:23; 20:17-19]. O Espírito, estou certo, planeja fornecer um propósito mais geral em Lucas do que em Mateus. Em Mateus, as palavras do Senhor são registradas, como se Ele estivesse Se dirigindo muito particularmente a um ouvido Judeu. Há instruções ali que, exclusivamente, posso dizer, alcançariam a consciência de um Judeu, despertando em sua mente a lembrança da lei e dos profetas. Estas são omitidas aqui, e o Senhor fala como tendo o homem diante d’Ele. Aquilo “que foi dito aos antigos”, o que era “a lei e os profetas”, erros em jejuns, esmolas e orações, que tanto prevaleciam entre os Judeus, não recebem nenhuma atenção aqui; mas tudo o que era moral, aplicando-se ao coração e à consciência do homem, recebe. (As advertências contra a cobiça, que, é claro, são desse caráter geral ou moral, são uma exceção a isso, pois embora sejam encontradas em Mateus, são omitidas aqui. Mas descobriremos que são assim omitidas, apenas para trazê-las à tona em outro lugar deste Evangelho, em conexão com outras cenas e verdades que eram moralmente mais adequadas a elas. Veja Lucas 12).

 

E isso é assim de acordo com a mente d’Aquele Mestre perfeito, cujas instruções são aqui e ali transmitidas de forma tão variada. Ele foi enviado para a circuncisão, é verdade. Ele não podia, no ministério real, passar a fronteira Judaica, mas Ele podia ver o homem através do Judeu; e foi do agrado do Espírito Santo nos mostrar, por Lucas, a mente do Senhor alcançando e apreendendo o homem dessa maneira, lidando com o humano, e não meramente com a consciência e afeições Judaicas.

 

Lucas 7

 

Este capítulo começa com outro exemplo, em nosso evangelista, de desconsideração de meras circunstâncias e ordem de tempo; pois o lugar que o caso do centurião preenche neste Evangelho não é de acordo com o que ocupa nos outros.

 

Há também, nesta narrativa, detalhes peculiares e característicos. Assim, aprendemos aqui sobre o fato de ele ter enviado os Judeus ao Senhor em seu favor, uma circunstância que Mateus não menciona. Isso ocorre porque Mateus, escrevendo mais diretamente para os convertidos Judeus, não registraria esse aspecto do caso, pois poderia alimentar o antigo orgulho nacional; ao passo que Lucas, escrevendo mais para os gentios, desejaria que eles se lembrassem do antigo favor em que os Judeus uma vez estiveram diante de Deus. Ambas essas abordagens tinham seu valor moral, que o Espírito certamente levaria em consideração. Então, com uma intenção moral semelhante, Lucas não menciona o comentário do Senhor sobre a fé deste gentio, como Mateus o faz – o evangelista Judeu menciona isso, pois poderia ajudar a conter o surgimento de um orgulho Judaico; já o outro não menciona, pois poderia ajudar a despertar um sentimento semelhante na mente de um gentio.

 

Essas distinções me parecem perfeitas em seu lugar. E então temos (e somente aqui) o caso da viúva de Naim, um caso que afeta tão ternamente o coração humano, que ele está apropriadamente sob o conhecimento do Espírito em Lucas. Pois no estilo de alguém que estava olhando para o homem, e suas tristezas e afeições, nosso evangelista nos diz que o jovem que havia morrido era “filho único de sua mãe, que era viúva”; e novamente, quando o Senhor o ressuscitou, que Ele “entregou-o à sua mãe”. Esses são traços e toques, bem de acordo com os tons humanos que têm sua corrente feliz e graciosa através da mente do Senhor neste Evangelho. E a pequena palavra “único” é peculiar a Lucas. Ela é usada no caso da filha de Jairo, e do homem cujo filho estava possuído por um espírito maligno, e aqui no caso da viúva de Naim. E tal palavra apelaria ao terno coração do Filho do Homem, e é amável e tocante em seu lugar. Quem dera pudéssemos captar mais do mesmo espírito terno, enquanto nos deleitássemos ao descobri-lo em Jesus!

 

E não posso deixar de notar, em conexão com este capítulo, o que me impressionou nos Evangelhos – a facilidade com que nosso Senhor permitiu que o véu d’Ele caísse diante da demanda da fé. Antigamente, quando foi solicitado a um rei de Israel que curasse um homem de sua lepra, ele rasgou suas roupas e disse: “Sou eu Deus, para matar e para vivificar?” Mas Jesus, o desprezado Galileu, em todo o repouso e certeza da glória consciente, vira-Se imediatamente para dizer: “Quero: sê limpo”. A glória do Deus de Israel resplandeceu então sem distração, quando a fé rasgou o véu. Então aqui – a fé de um gentio apela a Ele como o Senhor do céu e da Terra, que uma vez disse em uma palavra: “Haja luz, e houve luz” e agora poderia apenas dizer “uma palavra”, e o servo do centurião seria curado; e imediatamente, com a mesma facilidade, a glória divina irrompe novamente. Nenhuma perturbação, como se algo estranho estivesse sendo feito; era apenas olhar através da nuvem novamente, era apenas deixar o véu cair, para que “o Sol criador da vida”, o semblante do próprio Deus, pudesse aparecer em poder e graça. Qualquer coisa que pertencesse a Deus não era grande demais para Jesus, quando a fé O descobria. Mas, exceto pela fé, Ele velou a Si mesmo; pois Ele veio, o esvaziado Filho de Deus, para expiar os pecados e nos levar para casa, para Aquele de quem havíamos nos afastado em orgulho. A fé, por assim dizer, O intitulava a Se conhecer novamente por um momento; e esse deve ter sido um momento bendito para Ele. Mas, de outra forma, por amor a nós, Ele Se recusou a Se conhecer neste mundo mau e apóstata, dizendo: “Minha bondade não se estende a Ti” (Sl 16:2 – JND).

 

Este capítulo então apresenta a missão de João Batista ao Senhor, o que acredito ser um assunto de grande interesse e significado.

 

João tinha, muito antes disso, testemunhado a Pessoa do Filho de Deus. Quanto a isso ele não tinha dúvidas. Mas parece que ele não estava preparado para todos os resultados de ser a testemunha do Senhor. Como Moisés em seus dias. Moisés era o ministro de Deus, e tinha a condução do arraial através do deserto. Mas ele ficou impaciente sob a acusação, e diz: “Concebi eu, porventura, todo este povo? Gerei-o eu para que me dissesses que o levasse ao colo?” A fraqueza de sua mão para segurar a glória se revela, e setenta outros são estabelecidos para compartilhá-la com ele. Mas embora ele seja assim repreendido no lugar secreto do Senhor, ainda assim diante dos outros seu Senhor o vindicará; de modo que, imediatamente depois, Arão e Miriã são colocados para sinalizar reprovação por não terem medo de falar contra ele (Números 11-12). Assim também aqui com João Batista. João revela a fraqueza comum, e é escandalizado em Cristo. Como Moisés, ele se torna impaciente, não estando preparado para todo o custo e encargo de ser prisioneiro do Senhor, bem como ministro. Ele sabia que Jesus era o Filho de Deus, assim como Moisés sabia que Jeová era o Redentor de Israel; mas como os murmúrios do acampamento tinham sido demais para um, assim a prisão e as injúrias de Herodes agora provam ser demais para o outro; e João, como Moisés, deve ouvir uma repreensão em segredo: “Bem-aventurado aquele que em Mim se não escandalizar”. Mas diante dos homens também, como Moisés, ele permanecerá graciosamente aprovado por seu divino Mestre. “Entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João Batista”.

 

Este é o caminho constante do Senhor. Ele feriu Israel repetidas vezes nos lugares secretos do deserto, mas diante de seus inimigos Ele era como Aquele que não tinha visto iniquidade neles. Muitas questões foram resolvidas entre o Senhor e o arraial quando estavam sozinhos, mas no julgamento dos ímpios eles não deveriam entrar. E assim estão os santos agora sob o julgamento do Pai, mas o julgamento futuro não os aguarda. Naquele dia eles devem ter ousadia.

 

Assim, João aqui prova a fidelidade e a graça de seu bendito Mestre. E depois que o Senhor assim o defendeu e honrou diante daquela geração, Ele Se volta para dar a eles o caráter que eles haviam conquistado pelo tratamento que deram a João e a Ele mesmo. E o que é isso, senão uma revelação de nós, de que o homem é uma criatura que Deus não pode curar? Deus agora estava fazendo prova completa dele, dirigindo-se a ele por diferentes ministérios, mas o homem não tinha resposta para Deus. Quando Ele lamentou para ele, o homem não tinha lágrimas; quando Ele tocou flauta para ele, o homem não tinha dança. O coração humano não foi encontrado como instrumento para o dedo de Deus. Tudo estava desafinado, quando Deus o experimentou. Inteligência, zelo e ação estão lá a mando e despertando outras influências, mas nada estava lá para Deus. Ele havia levantado um tom solene pelo Batista, que veio não comendo nem bebendo, e depois um tom mais alegre pelo sociável Filho do Homem; mas não havia música no coração do homem para Deus. Isso foi agora provado após o teste das mãos mais hábeis. Pois todas essas tentativas estavam provando a habilidade do tocador, de modo que a sabedoria permaneceu “justificada por todos os seus filhos”. O que poderia ter sido feito mais do que foi feito? “Nós vos tocamos flauta, e não dançastes; cantamos lamentações, e não chorastes”.

 

Depois dessa solene palavra, nosso evangelista nos leva a outra cena – a casa de um fariseu, onde o Senhor tinha ido, a convite, para jantar. Pois nosso Senhor neste Evangelho é eminentemente o Social – Social como um Homem, para conversar com os homens. Portanto, nós O encontramos aqui, como já notei, mais frequentemente do que nos outros Evangelhos, assentado para refeições nas casas de outros, sejam eles quem forem, pois ali Ele poderia encontrar a mente relaxada e livre para que ela se mostrasse.

 

Esta cena na casa do fariseu é de grande valor moral. Ela nos mostra que nada nos introduz correta ou realmente a Jesus, exceto nossos pecados. Admirá-Lo como um Mestre, ou como um Fazedor de milagres, nunca nos lançará em Seu caminho de acordo com Deus. É somente o pecado e o senso dele que podem realmente nos introduzir ao Filho de Deus; pois Ele é um Salvador, e enviado a nós pelo Deus bendito como tal. Nicodemos foi levado a Ele como um Fazedor de obras poderosas; mas Nicodemos deve nascer de novo, deve ter outros pensamentos sobre Ele, antes que ele possa ir a Ele de maneira apropriada. Então, vemos aqui, este fariseu. E é claro que não foi como um pecador que ele O conheceu. Ele havia sido atraído, atraído amigavelmente também, por algo que ele tinha visto ou ouvido falar d’Ele, e ele prepara um banquete para Ele. Mas há outra pessoa na casa que O alcança por um caminho completamente diferente. Ela é uma mulher da cidade, uma pecadora, e seus pecados a trazem a Ele, e ela prepara outro banquete para Ele; e é na festa dela, e não na do fariseu, que o Senhor realmente Se assenta. As lágrimas, unguento e beijos dela são a festa à qual o Filho de Deus Se assenta, enquanto toda a mais custosa provisão do anfitrião é ignorada.

 

Isto é muito abençoado. É o pecador que realmente proporciona o banquete e a companhia para Jesus. Nem a mesa nem os amigos do fariseu eram adequados para Ele. É somente a fé que O apreende como o Salvador que pode preparar uma mesa para o Filho de Deus neste mundo desértico. E observo em cada lugar onde a conversão de Levi, o publicano, é registrada, que somos informados imediatamente depois que ele preparou uma refeição para o Senhor em sua própria casa. Pois ele era um daqueles a quem Jesus desceu dos céus resplandecentes para visitar. Ele era um publicano, um pecador reconhecido e declarado no mundo; e Jesus era o Salvador. A fé de tais, portanto, abriu a porta e O entreteve, fez com que Ele fosse bem-vindo em Seu próprio caráter, enquanto todo o resto apenas O manteve do lado de fora.

 

É nossa alegria saber disso e crer nisso. E quando começamos como pecadores com um Salvador, nossa jornada é maravilhosa e gloriosa além de todo pensamento; pois nossos pecados nos levam a Cristo, e então Cristo nos leva ao Pai. E que caminho é esse! Ele se estende desde os lugares mais tenebrosos e distantes da criação, onde o pecado e a morte reinam, até os céus mais altos, onde o amor e a glória habitam e brilham para sempre. Os anjos têm sua própria esfera imaculada para se mover, mas eles nunca trilharam um tal caminho como este. A Igreja passa das trevas de um pecador para a luz maravilhosa de Deus, e não houve nada parecido com isso; e ninguém, exceto um pecador consciente do valor do Filho de Deus, pode entender isso. E vejo, a partir dessa cena impressionante, que esse caráter de um pecador salvo pela graça do Filho de Deus, é lembrado até o fim. Esta mulher amou muito, mas seu amor não serviu para ela como pecadora; pois no final o Senhor lhe diz: “A tua  (não teu amor) te salvou; vai-te em paz”. Isso deve ser muito observado por todos nós, pois é muito reconfortante. O fruto do nosso amor pode ser honrado diante dos outros, como aqui as lágrimas e o unguento desta pobre mulher são reconhecidos diante do fariseu. Um copo de água fria não perderá sua recompensa, se dado por amor a Cristo. Mas diante da consciência do pecador nada é reconhecido, exceto o sangue e a fé que nele repousa. É a fé, e não o amor, que nos envia em nosso caminho com o eunuco regozijando, ou nos ordena, com esta pobre mulher, a ir em paz. E é doce, portanto, ser lançado em Jesus, e sobre Ele somente. Que a alma seja tão elevada, o andar tão brilhante e imaculado, e o amor tão brilhante, quanto eles possam ser, que a experiência seja tão rica e variada quanto a de Davi ou Paulo, ainda assim Jesus, Jesus, é o único Salvador. Jesus primeiro envia em paz, e a primeira confiança e gozo devem ser mantidos firmes até o fim.

 

Não posso, no entanto, fechar esta parte do nosso Evangelho, ou abandonar esta casa do fariseu, lugar frutífero como é, sem dar outra olhada nela. Pois me parece ter sido um lugar onde o grande conflito que tem sido frequentemente travado, o conflito entre a carne e o Espírito, ou entre as duas esposas, a escrava e a livre, foi novamente testemunhado.

 

Por transgressões, como a de Adão, a criatura assumiu força independente de Deus; e, portanto, ao restaurá-la, Deus deve ensiná-la que somente Ele é soberano, e que toda força da criatura precisa falhar. E esta é a lição que a lei e o evangelho juntos ensinam; pois a lei, testando o homem, mostra a vaidade da confiança na carne; o evangelho, revelando Deus, mostra a segurança da confiança n’Ele. E o mistério das duas esposas ensina o mesmo. Agar tinha força na carne, mas sua semente não era a herdeira. Leia tinha força e título na carne, mas seu filho não se destacou, mas perdeu o direito de primogenitura. Penina tinha força na carne, mas nenhum filho dela livrou Israel de sua miséria e opressão. Por outro lado, toda bênção e honra estavam com os filhos da promessa. Isaque causou risos, e foi ele em quem a casa de Abraão foi estabelecida. José obteve o direito de primogenitura, e, assim que José nasceu, Jacó falou em retornar à sua herança, pois “se... filhos... logo, herdeiros também”. Samuel encheu o coração e os lábios da mãe com um cântico, e foi nutrido até que levantou Israel do pó, recuperou a glória das mãos do inimigo e levantou a pedra de ajuda no meio do arraial. E todas essas coisas nos ensinam, assim como a lei e o evangelho nos ensinam, que pela força nenhum homem prevalecerá. “Despediu vazios os ricos”, o arco dos fortes foi quebrado, mas a pobre serva é lembrada, e aquela que era estéril dá à luz sete filhos.

 

Essa é a lição que Deus está nos ensinando; a lição necessária em um mundo como o nosso, onde a criatura se afastou de Deus em orgulho, na presunção de força querendo ser Deus. Portanto, o Senhor Deus está sempre dizendo: “Não por força, nem por violência, mas pelo meu Espírito”.

 

Esse é o conflito neste nosso mundo, e aquilo que é da carne ou do homem sempre lutou com o que é de Deus ou do Espírito, e esta luta nós temos exibido desde tempos muito antigos, e ainda a temos. A casa das duas esposas, à qual me referi, constantemente a apresentou. A de Abraão testemunhou muito especialmente. Ali Agar e Sara por um tempo moraram juntas, mas em discórdia e conflito. A família de Jacó apresentou o mesmo. Leia tinha o direito da carne ou do primogênito, mas Raquel era o objeto de eleição e deleite; e elas duas, as esposas do mesmo marido, moravam juntas, mas não conseguiam concordar. Na casa de Elcana era o mesmo. Penina e Ana eram Agar e Sara, Leia e Raquel novamente – orgulho e provocações com uma, e tristeza constante de coração com a outra. E todas essas cenas eram as expressões da maneira como a carne persegue o Espírito. A Igreja na Galácia foi outra cena da mesma luta. E o coração de cada crente é, em medida, o mesmo. E nada cura a casa, a Igreja ou o coração, senão fortalecer a mulher livre, dando frutificação à semente de Deus, ao espírito de adoção, ao princípio do “como crianças”, a liberdade santa em nós e entre nós. Dê à luz Isaque, e mande Ismael embora, e habite numa casa indivisa. “Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou e não torneis a meter-vos debaixo do jugo da servidão [escravidão – ARA].

 

Agora o Senhor encontrou Israel muito parecido. O que nasceu segundo a carne perseguiu o que nasceu segundo o Espírito. A pobre mulher estéril foi encontrada lá novamente, a pecadora contaminada e a publicana, fraca e perdida em si mesma, recebendo a visitação graciosa do Deus de todo poder e amor, mas sofrendo o desprezo e a perseguição daqueles que tinham força em si mesmos, como eles julgavam – os fariseus, as agares e as peninas daquele dia. Tudo isso era, em princípio, a carne e o Espírito novamente, a escrava e a livre; e esta casa que agora visitamos foi uma amostra disso.

 

Que nossa fé seja fortalecida para fazer justiça ao amor de Deus! Esse amor reivindica nossa plena e feliz confiança. Dar-lhe apenas uma confiança hesitante e suspeitosa é tratá-lo indignamente. Que todo esse espírito de medo e escravidão se vá! Que a verdadeira Sara em nosso coração clame, e clame até que prevaleça: “Lança fora a escrava e seu filho”. Pois quando o Senhor faz Sua obra, Ele a faz de uma forma digna de Si mesmo. Quando Israel saiu do Egito, eles saíram, não como se estivessem envergonhados de si mesmos, mas arregimentados e de mãos cheias. Eles saíram como o exército de Deus deveria sair. Nenhum cão ousou mover sua língua contra eles, nem havia uma pessoa fraca entre suas tribos. E assim é conosco; pecadores, saindo de debaixo do poder das trevas com nosso Redentor. Não devemos prosseguir com medo e desconfiança, como se dificilmente pudéssemos confiar no braço que nos estava salvando, mas de uma maneira que declare claramente que a obra é a obra d’Aquele cujo “amor é tão grande quanto o Seu poder, e não conhece medida nem fim”.

 

Devemos deixar a casa do fariseu para trás de nós, como esta pobre pecadora, sem nos importar com o que o grupo ali diz, mas ainda carregando em nosso coração e ouvido o doce eco da voz do Senhor, que nos fala de paz. Então, sairemos, como Israel do Egito, como os redimidos do Senhor devem sair, deixando o inferno e a Terra saberem, em nossa jubilosa e perfeita certeza de Sua salvação, que Aquele que é mais elevado do que o mais elevado está do nosso lado, e que estamos nos alimentando do “pão dos poderosos”.



 
 

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