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Disciplina Cristã - Parte 1

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ÍNDICE


 

Disciplina Cristã

Julius Anton Wilhelm Eugen von Poseck

 

Introdução 


Dificilmente existe um princípio de verdade Cristã, sobre o qual prevaleçam tantos grandes erros e diferenças de opinião entre os Cristãos, como sobre o significado de “disciplina”.

 

A palavra “disciplina”, no original grego do Novo Testamento e nas línguas latinas e românicas modernas, tem praticamente o mesmo significado: “educação”. É uma verdade bem conhecida que é impossível a verdadeira educação sem correção, seja nas coisas divinas ou humanas, embora, infelizmente, pouco levada em conta nestes “tempos trabalhosos” de orgulho, vontade própria e autoafirmação. Mas o termo “disciplina” assumiu em muitos países, especialmente entre nações com hábitos escolares, um significado mais com sabor de “chicote” e “vara”, do que de graça Cristã – verdade sem graça; enquanto entre outros, conhecidos pelas suas inclinações liberais, aparece frequentemente o erro oposto, a saber: graça sem verdade. “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo”. Esta é a ordem de Deus, que não deve ser posta de lado, muito menos em questões de disciplina.

 

A razão para a confusão e dificuldades prevalecentes nas questões de disciplina deve ser buscada, em parte, na nossa propensão natural de julgar os outros e não a nós mesmos, na nossa triste falta de graça e humildade Cristã; em parte, em nossa propensão à preferências carnais, ou aversão e preconceito contra aquele que é objeto de disciplina; e por último, mas não menos importante, na ruína geral da Igreja de Deus, num falso sistema religioso e na consequente confusão quanto às verdades da Igreja em geral.

 

A Igreja, como “casa do Deus vivo”, não pode abster-se da disciplina, se não quiser perder todas as reivindicações como tal. Enquanto existirem a carne, o miserável “eu” interior e o mundo com suas tentações ao nosso redor, a disciplina será uma necessidade absoluta mesmo neste mundo; quanto mais na Igreja de Deus! O que seria de uma escola, de um exército ou de uma família sem disciplina? Nada além de confusão e corrupção, destinados à destruição. Quanto mais isso é verdade no que diz respeito à “casa do Deus vivo”! “A santidade convém à Tua casa, SENHOR, para sempre”.

 

Mas é da maior importância que tenhamos plena clareza sobre o significado e a natureza da disciplina; pois a ignorância quanto a esta questão solenemente importante causou e ainda causa sérios erros com as mais tristes consequências para a Igreja de Deus. Esforcemo-nos, portanto, para encontrar as respostas às seguintes perguntas, que naturalmente se apresentam, orando ao Senhor por Sua orientação.

 

As questões que devemos considerar são:

 

  1. O que é disciplina Cristã?

  2. Quais são os tipos de disciplina Cristã?

  3. De que maneira e com que espírito a disciplina deve ser aplicada?


 

1. O QUE É DISCIPLINA CRISTÃ? 


Por disciplina Cristã entendo o privilégio do crente, sob a graça, e o esforço amoroso que lhe incumbe, de advertir, exortar, instruir e aconselhar um companheiro Cristão que errou ou está em evidente perigo de se desviar, no espírito daquela sabedoria que vem do alto e no “espírito de mansidão” (Tg 3:17-18 e Gl 6:1), como na presença de Deus; e (em caso de arrependimento) encorajá-lo, confortá-lo e fortalecê-lo, e ajudá-lo a uma renovada comunhão com Deus, e assim reconduzi-lo ao caminho da santidade, da justiça e da paz, ou seja, “restaurai o tal” (Gl 6:1 – TB).

 

O que muitas vezes é entendido por disciplina na Igreja, a saber: a excomunhão da assembleia, deveria ser. e é de fato. apenas o fim da disciplina, a última e extrema medida, depois que todos os esforços para restaurar o errante terem se mostrado infrutíferos. Nada pode ser mais contrário ao Espírito de Deus e à graça de Cristo do que começar com a excomunhão da assembleia ou Igreja; isto significa tomar como primeiro passo na disciplina, aquele que deveria ter sido o último e o encerramento da disciplina, cuja intenção deveria ser evitar esse ato extremo e solene de disciplina da Igreja. Pois, por mais verdadeiro que seja que uma Igreja que se recuse a exercer a disciplina piedosa, não pode mais ser considerada como a assembleia de Deus, uma assembleia que é culpada de um ato de disciplina tão precipitado e prematuro, pronuncia a sua própria condenação, e irá descobrir que o “Juiz está à porta” (Tg 5:9). O que deveríamos dizer de um médico que, quando chamado para curar uma perna doente, começaria a cura amputando-a? Ou o que se diria de um pai de família que, no caso de um filho desobediente, iniciasse sua disciplina expulsando-o de casa? Não seria ele chamado de pai desnaturado e sua ação considerada como bárbara ao extremo? E, no entanto, quantas vezes ouvimos falar de tais cruéis procedimentos, quando em casos da chamada disciplina piedosa o primeiro grito foi: “Seja excluído da assembleia!” Aqueles marinheiros gentios, que “remavam, esforçando-se” para salvar tanto Jonas (que foi a causa de toda a sua angústia), como a si mesmos e ao navio, poderiam ensinar uma lição a muitos marinheiros Cristãos!

 

Como tais medidas cruéis e ímpias devem ferir o terno e amoroso coração de pastor d’Aquele que é nosso Cabeça na glória, e cuja última ação antes de voltar novamente para Seu Pai, foi restaurar uma ovelha que havia se desviado de Seu rebanho, que era ninguém menos que Seu principal apóstolo, a quem Ele confiou as chaves do reino dos céus e que O negou três vezes.

 

Tais decretos judiciais (como estamos constantemente testemunhando) não deixam de trazer, mais cedo ou mais tarde, o julgamento de Deus sobre os juízes e assessores, por parte d’Aquele que é o Filho sobre Sua própria casa, Cabeça da Igreja e Sumo Pastor, e Quem há mais de 2.000 anos, pelo Seu Espírito profético em Seu profeta Ezequiel, pronunciou este julgamento sobre os falsos pastores.

 

“A fraca não fortalecestes, e a doente não curastes, e a quebrada não ligastes, e a desgarrada não tornastes a trazer, e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com rigor e dureza... Eis que Eu estou contra os pastores e demandarei as Minhas ovelhas da sua mão; e eles deixarão de apascentar as ovelhas e não se apascentarão mais a si mesmos; e livrarei as Minhas ovelhas da sua boca, e lhes não servirão mais de pasto” (Ez 34:4, 10). 


 

2 - QUAIS SÃO OS TIPOS DE DISCIPLINA CRISTÃ? 


Consideremos agora os diferentes tipos de disciplina Cristã. Há três tipos:

 

  1. Quando um irmão peca contra outro irmão. (Mt 18:15-17);

  2. A disciplina da vigilância paterna e do cuidado pastoral (Gl 6:1; At 20:28-31; 1 Ts 2:11-12; 1 Tm 5:19-21);    

  3. A disciplina de Cristo, como “Filho sobre Sua própria casa”. (Hb 3; Jo 13).


As duas primeiras têm caráter pessoal. A intenção delas é evitar a disciplina da Assembleia.

 

1. Um irmão pecando contra outro irmão 

Quanto a este caso, as instruções de nosso Senhor são simples e claras: “Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o [reprova-o – JND ou conta-lhe sua falta – KJV] entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão. Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que, pela boca de duas ou três testemunhas, toda palavra seja confirmada. E, se não as escutar, dize-o à igre[ja assembleia – JND] e, se também não escutar a igreja, considera-o [que ele seja para ti – JND] como um gentio e publicano” (Mt 18:15-17).

 

Nestas palavras de nosso gracioso Mestre, não podemos deixar de notar imediatamente o cuidado especial que Ele toma para nos lembrar que este não é um caso de disciplina da assembleia, mas de ofensa pessoal de um irmão contra outro, alertando-nos contra confundir as duas coisas que tem causado grande tristeza e prejuízo na Igreja. Sempre foi o esforço de Satanás (ao qual a carne em nós está muito disposta a ajudá-lo) rebaixar as questões da assembleia tornando-as em questões pessoais, ou elevar assuntos pessoais tornando-os em questões da assembleia, usando assim o nosso orgulho natural para produzir o cancer do espírito partidário na Igreja de Deus. A história da Igreja desde os tempos dos apóstolos até agora contém a triste confirmação disto.

 

“Se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o [reprova-o – JND ou conta-lhe sua falta – KJV] entre ti e ele só”. O que nosso manso e humilde Mestre pretendia com essas palavras? Simplesmente isto, que o irmão que foi injustiçado vá até seu irmão no espírito daquele amor que “cobre uma multidão de pecados”, e com a intenção de que o pecado de seu irmão não seja apenas coberto, isto é, que permaneça em segredo para todos os outros, mas sim, que seja confessado e julgado como na presença de Deus, ser assim totalmente posto de lado, entre Deus e o irmão que pecou, e entre os próprios dois irmãos, à maneira de nosso amoroso e gracioso Deus, de Quem devemos ser “imitadores”. Ele “dá liberalmente e não censura” (Tg 1:5 – AIBB), e Ele perdoa liberalmente e não censura, dizendo: “jamais Me lembrarei de seus pecados e de suas iniquidades” (Hb 10:17). Este último é muito mais difícil para nós do que dar e não repreender. A intenção é que o pecado do irmão seja mantido em segredo, ou melhor, totalmente eliminado, antes que possa chegar aos ouvidos de uma terceira pessoa, e muito menos da Igreja. Mas se o irmão não te ouvir, leva contigo um ou dois. Uma testemunha no sentido do amor e da graça, mas duas no sentido da sabedoria, de acordo com o caráter individual do irmão que errou e o resultado mais ou menos esperançoso da sua primeira conversa privada com ele. Neste último caso, seria mais provável que duas testemunhas impressionassem a consciência do irmão que havia falhado, e em certos casos seria sensato não comparecer perante a Igreja como testemunha em sua própria causa, caso o assunto tivesse que ser levado perante a Igreja.

 

Mas se o errante não ouvir a Igreja. (ou assembleia), e então? Ele endureceu seu coração contra as demonstrações dos fatos e protestos com lágrimas do irmão injustiçado por ele; o depoimento conjunto de duas testemunhas adicionais revelou-se sem efeito sobre a sua consciência; até mesmo a exortação da assembleia não foi escutada – o que resta, diriam alguns, senão a dolorosa necessidade da disciplina da assembleia? Ele não deveria ser colocado fora de comunhão?

 

Não! Diz o Filho sobre a Sua própria casa, que é mais Santo, mais Sábio e mais Gracioso do que todos nós; “se também não escutar a igreja, considera-o” (isto é, para aquele contra quem ele pecou) “como um gentio e publicano”. Ele, o Cabeça do Seu corpo, a Igreja, como Ele é nosso Senhor, Mestre e Salvador pessoal, não nos permitirá elevar questões pessoais em questões da assembleia, nem rebaixar as questões da assembleia em assuntos pessoais.

 

Prestemos atenção a esta advertência do nosso Bom, Grande e Sumo Pastor! Que tristeza, sofrimento, angústia e destruição poderiam ter sido poupadas às preciosas ovelhas e aos tenros cordeiros de Seu rebanho, se Seus subpastores, como boas ovelhas, tivessem ouvido Sua voz e acatado Suas precisas instruções! Que Ele nos conceda ser fortalecidos “na graça que há em Cristo Jesus” (2 Tm 2:1), e ser “cheios do conhecimento da Sua vontade, em toda a sabedoria e inteligência espiritual” (Cl 1:9).

 

Pode acontecer, e acontece, que tal irmão impenitente, endurecido e perseverante num obstinado mau proceder, se torne finalmente sujeito à disciplina da Igreja e seja excluído da assembleia. Mas isso é algo bem diferente. Não se evita um extremo tão triste colocando-se à frente do Senhor e além de Sua Palavra, mas esperando n’Ele e seguindo Sua Palavra.

 

Outro caso de disciplina Cristã (embora não seja disciplina da assembleia) é o de um irmão “que andar desordenadamente”, isto é, como explica o apóstolo, “não trabalhando, antes, fazendo coisas vãs [intrometendo-se na vida alheia – AIBB] (2 Ts 3:6-16). O apóstolo aqui ordena com a solenidade da autoridade apostólica (como em 1 Coríntios 5), em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, “que vos aparteis” de alguém assim. A razão de sua linguagem solene neste caso é porque a ociosidade, tão severamente repreendida nas páginas da Santa Escritura, e até mesmo pelo mundo, abre a porta para o tentador, como testemunhado pela advertência no exemplo de Davi. Mas, afinal de contas, este não é um caso de “tirai, pois, dentre vós” ou de disciplina da assembleia como em 1 Coríntios 5, mas de disciplina a ser aplicada pelos irmãos individualmente contra o ocioso e o de maus intentos, afastando-se de toda comunhão pessoal com ele. A intenção deste tipo de disciplina Cristã é agir pela força de tal testemunho unido sobre o coração e a consciência daquele que “andar desordenadamente”, e assim evitar sua excomunhão da assembleia. O apóstolo então continua: “Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai”, não diz “tirai dentre vós”, mas, notai o tal e não vos mistureis [não mantenhais companhia – JND] com ele, para que se envergonhe”, isto é, que o irmão em erro possa ver seu mau caminho e abandoná-lo, e assim ser poupado da disciplina final, isto é, da disciplina da assembleia, que pode se tornar necessária devido a alguns dos sérios frutos de sua ociosidade. Por esta razão, o apóstolo conclui com as graciosas palavras: "Todavia, não o tenhais como inimigo, mas admoestai-o como irmão”. Sua linguagem neste caso é muito diferente daquela em 1 Coríntios 5.

 

Quanto ao caso em Mateus 18 gostaria de fazer algumas observações sobre um erro (para falar com delicadeza) que não é raro de acontecer. Refiro-me ao caso de um irmão que se abstém de partir o pão, seja porque se considera insultado ou injustiçado por alguém na assembleia, ou, o que é pior ainda, porque ele nutre uma antipatia ou suspeita pessoal contra a pessoa que o ofendeu. Se agir assim no primeiro caso acima mencionado, constitui-se acusador e juiz em sua própria causa, provando assim o quão pouco aprendeu a conhecer-se e a julgar-se (seu orgulho, sua vontade própria e o poder cegante dessas coisas o levaram a tal presunção) e quão pouco ele percebeu em sua alma o verdadeiro caráter da Igreja como corpo de Cristo. E não só isso, mas ao excluir-se da mesa do Senhor, por causa de seu irmão que lhe é desagradável, ele nega ao Senhor não apenas o tributo de reverência em adoração e ação de graças que Lhes são devidas no memorial de Seu amor, mas rouba de si mesmo todas as preciosas bênçãos relacionadas com a mesa do Senhor. Para se vingar de seu rosto, ele corta o próprio nariz. Que loucura, sem falar da triste condição de alma que causa isso.

 

“Mas”, dirão alguns, “não é pior sentar-me à mesa do Senhor, que é a expressão da comunhão Cristã, com um irmão que me ofendeu, ou contra quem tenho algo em meu coração, ou tenho razão para suspeitar?”

 

Minha resposta a isso é simplesmente esta: em assuntos divinos, a regra para nossas ações deve ser a Palavra de Deus e não os sentimentos e princípios naturais. Em nenhum desses casos a Escritura justifica tal passo de independência. A esses eu deveria dizer: Se você acha que seu irmão lhe fez mal, por que não, depois de agir de acordo com Mateus 18, “considerai-o” (você e não vocês) “como um gentio e publicano”? Ou seja, você pode recusar-lhe a mão direita de comunhão, não notando mais a presença dele na assembleia. Nem uma palavra é dita de que ele deveria ser excluído da assembleia, muito menos de você se colocar sob disciplina no lugar dele.

 

No segundo caso, isto é, onde você tem algo em seu coração contra um irmão, por que você não age de acordo com a clara ordem do Senhor em Mateus. 5:23-24, e vai até seu irmão, a fim de livrar seu coração do que você tem contra ele? Na passagem que acabamos de referir, o Senhor ordena-nos que procuremos o nosso irmão, não apenas quando temos algo contra ele, mas “se trouxeres a tua oferta ao altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem, e apresenta a tua oferta”. Certamente, então, você deve ir até ele, se tiver alguma coisa contra ele, e reconciliar-se com ele[1]. Mas, em vez disso, você vira as costas ao altar e fica longe com a sua oferta de graças devida a Deus. Que cegueira em pecar assim contra Deus e contra seu irmão! [1] Presumo que na passagem acima não se trata de ter feito ou sofrido algo errado, mas de sentimento pessoal e animosidade.

 

No terceiro caso, isto é, ficar afastado da mesa do Senhor porque você acha que tem motivos para suspeitar de um irmão, seja por ter notado algo errado em sua caminhada, ou por ter ouvido algum mau relato sobre ele. Saiba que sua maneira de agir parece ser ainda mais perversa e pecaminosa. Pois ou a coisa ruim que você notou em sua caminhada ou que ouviu falar dele é de tal natureza que o torna sujeito à disciplina da Igreja, isto é, causa sua excomunhão da assembleia, ou é de natureza menos urgente e solene. No primeiro caso, é seu dever informar a Igreja sobre o mau proceder dele, se for provado e conhecido por você como um fato, a fim de que o mal possa ser eliminado da assembleia. Em vez disso, seja por medo dos homens, seja por motivos naturais do amor humano, das amizades ou das relações familiares, você se excomunga a si mesmo da mesa e da Igreja, fazendo com que ambas sejam contaminadas, e imaginando assim pacificar sua consciência e mantendo-a pura! Que impureza! Que covardia! Que pecado grave contra Deus, contra Cristo e a Igreja!

 

Se, por outro lado, a inconsistência que você notou no andar de um irmão não é de natureza tão séria a ponto de causar sua excomunhão ou mesmo uma repreensão pública diante da Igreja, por que, no devido amor ao seu irmão, você não vai até ele e tenta remover a contaminação que você notou lavando seus pés de acordo com o exemplo e ordem solene de nosso bendito Senhor e Mestre? (Jo 13:14 – disto falarei mais adiante).

 

Você suspeita do seu irmão? “O amor... não suspeita mal” Você desconfia dele? “O amor... tudo crê, tudo espera” (1 Co 13). Ou a sua desconfiança é baseada na informação de algum irmão de confiança? Pergunte a esse irmão confiável se ele falou com o irmão contra quem ele lhe forneceu essa informação prejudicial e, se ele não o fez, ofereça-se para acompanhá-lo sem demora até aquele contra cujo caráter piedoso ele levantou dúvidas em sua mente. Se ele recusar fazer isso, repreenda-o severamente e imediatamente descarte de sua mente qualquer outro pensamento suspeito contra aquele irmão, pois você não tem o direito de alimentar sequer uma sombra de suspeita contra um companheiro crente, a menos que seja baseada em fatos inegáveis e testemunhas dignas de confiança. Proferir ou espalhar tais suposições malignas ou mesmo apenas expressões depreciativas sobre um irmão crente, o que pode ser feito às vezes de uma forma aparentemente inocente e de maneira meio jocosa, não é apenas algo vil e ímpio, mas é realmente diabólico. Em muitas reuniões, toda a verdadeira comunhão, paz e bênçãos foram interrompidas e perturbadas, tendo o “acusador de nossos irmãos” conseguido impregnar a atmosfera espiritual em tais assembleias com uma vaga desconfiança, más suspeitas e indistintas apreensões a tal ponto que a respiração espiritual nessa atmosfera tão espessa e venenosa tornou-se quase impossível e terminou com a dissolução da assembleia.

 

Ficar longe da mesa do Senhor por mera suspeita ou desconfiança contra alguém ou alguns na assembleia apenas revela que o suposto mal, do qual aquele que se separa pretende purificar-se pela sua própria exclusão, está contido dentro dele mesmo. Portanto, seria melhor que ele começasse por si mesmo, em vez de julgar seu irmão e a assembleia, separando-se deles. Tal orgulho farisaico sob o manto da consciência é muito triste para um Cristão, provando a sutileza e o poder cegante da carne em nós.

 

Deixe-me resumir o que foi dito, numa ilustração simples. Suponhamos que um dos filhos de uma família imagine ter motivos para reclamar contra um de seus irmãos, ou, por alguma causa, nutre uma grande aversão por ele. Seu sentimento fica tão forte que ele decide se ausentar das refeições familiares normais. Com a sua ausência daquela mesa, que em si é a expressão do vínculo e da união familiar, ele não apenas menosprezaria os irmãos e irmãs habitualmente presentes à mesa, mas sobretudo cometeria um flagrante desrespeito pelos pais que presidem aquela mesa. Além disso, aquele filho não muito amável, para demonstrar sua antipatia ou desaprovação pelo irmão, expor-se-ia à fome, procedimento suicida, que pouco serviria ao seu propósito. Pois dificilmente se poderia supor que aquele membro separatista da família, que assim despreza a mesa dos pais, fosse tão longe em sua ousadia a ponto de esperar que suas refeições fossem enviadas para seu local de reclusão (assim com o obstinado membro  de Cristo, separando-se da mesa do Senhor, poderia supor esperar que as bênçãos de Deus relacionadas com a mesa o seguissem até o exílio que ele mesmo escolheu). Suponhamos agora que aquele filho peculiar e insociável, ao ser repreendido por seu pai por sua conduta, alegasse que sendo a mesa dos pais a expressão da comunhão familiar, não seria consistente e honesto da parte dele sentar-se ali com um membro da família com o qual ele sentia que não poderia ter comunhão. O que o pai diria diante de tal desculpa? Ele lhe diria: “Se seu irmão ofendeu você, por que você não foi até ele, procurando convencê-lo de seu erro com espírito de mansidão e amor fraternal? E se ele não quisesse ouvir você nem seus irmãos e irmãs, você deveria ter me contado, e eu o teria advertido e, se necessário, o reprovado e corrigido. Em vez de seguir este único caminho correto, você, meu filho, preferiu tomar o assunto com suas próprias mãos e constituiu-se acusador e juiz em sua própria causa. Sua maneira de agir não me parece conscienciosa, como você deseja apresentá-la, mas antes revela um coração mau e uma consciência perversa, orgulho e obstinação. A mesa à qual você virou as costas não é sua, nem de seu irmão, mas é a minha mesa. Se você continuar a desprezar a mesa da família e, assim, desconsiderar seus pais, seus irmãos e suas irmãs, não lhe resta nada além de sair de casa e ir para a pensão do mundo e provar sua comida.”

 

Demorei-me neste ponto por mais tempo do que pretendia, devido à sua ocorrência frequente, especialmente em pequenas cidades e reuniões no campo, onde o conhecimento pessoal é muito mais próximo e mais sujeito a atritos. “O fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz”.

 

2. Vigilância e cuidado paterno 

(Gl 6:1; At 20:28-31; Ts 2:11-12; 1 Tm 5:19; 2 Tm 4:2; 1 Jo 2:13-14)

 

O segundo tipo de disciplina Cristã é a vigilância paterna e o cuidado pastoral. Como a disciplina anterior, esse tipo tem um caráter pessoal. A Igreja, como tal, não tem nada a ver com isso. Sua intenção é evitar a disciplina da assembleia.

 

Mas enquanto no caso anterior se tratava de uma questão pessoal entre irmãos, este segundo tipo supõe, e na verdade exige, experiência espiritual, sabedoria e graça, por parte de quem deve exercê-la. Ele deve falar como um pai para seus filhos, como alguém cuja superioridade não é apenas a idade e maior experiência e conhecimento, mas a graça e uma caminhada piedosa. “Vós sois testemunhas, e também Deus”, poderia dizer o apóstolo da Igreja, “de quão santa, justa e irrepreensivelmente nos comportamos para com vós, os que credes” (1 Ts 2:10 – TB). Em seguida, ele continua: “Assim como bem sabeis de que modo vos exortávamos e consolávamos, a cada um de vós, como o pai a seus filhos, para que vos conduzísseis dignamente para com Deus, que vos chama para o Seu reino e glória”. O mesmo encontramos em Gálatas 6:1. O apóstolo primeiro os exorta (cap. 5:25-26): “Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito. Não sejamos cobiçosos de vanglórias, irritando-nos uns aos outros, invejando-nos uns aos outros” Ele então continua: “Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai [restaurai – TB] o tal com espírito de mansidão, olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado”.

 

Nem sempre aquele que assume uma postura de pai é necessariamente um pai. O verdadeiro pai se comporta e age como pai simplesmente porque o é: “não é aprovado aquele que se recomenda a si mesmo, mas sim aquele a quem o Senhor recomenda”. A verdadeira superioridade espiritual não se afirma, mas se faz sentir. Não busca reconhecimento, mas é reconhecida porque é verdadeira. Alguns em Corinto agiam como pais, mas na verdade eram bebês.

 

A autoridade paterna na Igreja deve estar associada à ternura maternal, como foi o caso do apóstolo. Ele não apenas exortou os tessalonicenses como seus filhos; ele também sabia como confortá-los. Ele lhes escreveu: “fomos brandos entre vós, como a ama que cria seus filhos”. O poder perfeito e a ternura perfeita não estão unidos em nosso Deus? Sua mão é tão terna quanto é poderosa. Lançará os incrédulos no lago de fogo e enxugará todas as lágrimas do rosto de Seus amados filhos.

 

“Pais” são aqueles que “conhecem Aquele que é desde o princípio”, a Quem não apenas foi “dado todo o poder no céu e na Terra”, mas Aquele que também é “manso e humilde de coração”. Eles “aprenderam a Cristo”, cujo jugo é suave e Seu fardo é leve, e são, portanto, capazes, como tais “que são espirituais”, com autoridade, ternura e cuidado paternais, para restaurar aqueles que foram surpreendidos em uma falta “com espírito de mansidão” e levar “as cargas uns dos outros”, cumprindo assim “a lei de Cristo”[2]. [2] Esta última qualidade especialmente constitui os verdadeiros “pastores”, isto é, aqueles que não apenas alimentam o rebanho, mas que,  diante de Deus, tomam sobre si todos os cuidados e tristezas, o pecado e a miséria de um irmão que erra, e “Dele trazem o remédio para aquele que está falhando”, como alguém observou de forma maravilhosa.

 

Tal pessoa vai até seu irmão errante, cujo pecado e carga ele assumiu diante de Deus como se fossem seus, e fala a seu irmão palavras de graça e verdade.

 

Palavras de verdade, assim ditas com amorosa gentileza a um irmão que erra, sempre encontrarão um bom lugar com ele, mesmo quando não forem bem recebidas de início. Nestes últimos dias, quando o orgulho e a vontade própria levantam a cabeça, não só no mundo, mas, infelizmente, na Igreja de Deus, o serviço Cristão de lavar os pés uns dos outros deve frequentemente esperar uma recepção indelicada. Há homens cuja pele é tão fina que um leve arranhão faz com que o sangramento seja difícil de ser estancado. E então hoje em dia não são poucos os Cristãos com uma constituição espiritual tão tenra, ou talvez tão  delicada, que ao menor arranhão acidental[3], levantam-se como se tivessem sido perfurados por uma adaga. Eles apenas provam quão pouco seu coração foi estabelecido pela graça e quão pouco aprenderam d’Aquele que é manso e humilde de coração. Mas isso não deve nos impedir de cumprir nosso dever sob a graça, de lavar os pés uns dos outros, que nosso gracioso e humilde Mestre, que é amor, mas também o “Santo” e “Verdadeiro”, tão solenemente ordenou aos Seus na noite que antecedeu Sua morte na cruz, depois de Ele mesmo nos ter dado o exemplo. [3] Esse pequeno “arranhão” não intencional acontecerá às vezes, mas é algo muito diferente das “alfinetadas” infligidas pelos três “desprezíveis consoladores” de Jó, em suas tentativas de lavar seus pés. O resultado do serviço deles foi que Jó teve que orar por eles, para que o Senhor não tratasse com eles de acordo com sua loucura.

 

“Entendeis o que vos tenho feito? Vós Me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque Eu o Sou. Ora, se Eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque Eu vos dei o exemplo, para que, como Eu vos fiz, façais vós também. Na verdade, na verdade vos digo que não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou. Se sabeis essas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes” (Jo 13:12-17).

 

A mansidão e a humildade Cristãs, tão intimamente ligadas ao amor Cristão, são requisitos essenciais no serviço de lavar os pés.

 

Quando nosso Senhor disse: “Eu vos dei o exemplo, para que, como Eu vos fiz, façais vós também”, Ele certamente não quis dizer que deveríamos imitá-Lo nos meros preparativos para esse serviço, como “cingir-se com a toalha” e “derramar água na bacia”. Muitos demonstram grande aptidão para tais preparativos, mas desmoronam no ato de lavar os pés, porque evitam ajoelhar-se para se achegar aos pés do irmão. Eles entram em sua presença com um ar que diz: “Vim lavar seus pés”. Preparativos assim se assemelham mais aos de um barbeiro do que ao serviço humilde de um Cristão lavando os pés, e geralmente fazem mais mal do que bem. Um conhecido servo de Cristo observou verdadeiramente: “Se eu não julgar primeiro em mim mesmo a carne que vejo ativa em meu irmão (pois a mesma existe em mim), não estou apto para lavar os pés de meu irmão”. Se antes de ir a um irmão para lavar seus pés, eu tiver estado no pó perante do Senhor, vou parecer pequeno perante meu irmão, e assim poderei remover suavemente a contaminação.

 

Quanta humildade devo ter para com um irmão? O suficiente para suprir sua falta dela. Se ele não dobrar os joelhos, deixe-me dobrar os meus e ele logo o seguirá. Não fez Gideão isso diante dos efraimitas? (Jz 8:1-3) Quanto amor devo ter por meu irmão? O suficiente para compensar sua falta dele. Não nos deu o exemplo o grande apóstolo da Igreja? (2 Co 12:15). Assim deveria ser entre os membros de Cristo. Um membro deveria suprir os outros. É assim entre nós?

 

Sendo o importante serviço Cristão do lavar os pés que faz parte integrante da gama mais ampla de vigilância paterna e cuidado pastoral, pensei que algumas observações sobre o dever Cristão geral do lavar os pés poderiam ser oportunas em meio às dificuldades crescentes que assolam a “casa do Deus vivo” nestes últimos dias.

 

3 – Disciplina de Cristo como Filho sobre Sua Própria Casa, e Disciplina da Igreja propriamente dita (Hb 3:6; 1 Co 5) 

Os dois primeiros tipos de disciplina mencionados anteriormente têm um caráter pessoal e visam evitar a disciplina da assembleia, isto é, a excomunhão da pessoa problemática da assembleia e, portanto, tristeza e vergonha geral. Alguém observou verdadeiramente que noventa por cento da disciplina Cristã é de caráter pessoal[4]. Se a questão chegou ao ponto que a disciplina de Cristo, como Filho sobre a Sua própria casa, se tornou necessária, não é, como nos casos anteriores, uma questão de restaurar alguém que pecou, mas da responsabilidade de todos manterem a casa de Deus incontaminada. A própria expressão, disciplina de “Cristo, como Filho sobre a Sua própria casa”, deveria servir para impressionar a assembleia com a profunda e solene percepção da sua responsabilidade corporativa perante Deus. [4] J. N. Darby, “Sobre Disciplina”.

 

Cristo mantém não apenas as chaves da morte e do Hades em Sua mão vitoriosa, mas como “Filho sobre Sua própria casa”, Aquele “que é Santo, o que é Verdadeiro”, também possui a chave do testemunho e do serviço. E como poderíamos esperar que Ele, o Santo e Verdadeiro, daria uma “porta aberta” ao testemunho de uma assembleia que, embora professamente reunida ao Seu Nome, em descuidada indiferença sanciona com esse Santo Nome o mal que o desonra, revelando assim que tem pouca ou nenhuma noção do que é devido Àquele que leva esse Nome e é “o Filho sobre a Sua própria casa”?

 

O apóstolo, portanto, foi obrigado a recordar Seu Nome à memória dos Coríntios que praticamente pareciam ter esquecido seu significado com aquelas palavras: “em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, juntos vós e o meu espírito, pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo, seja entregue a Satanás” etc. Os coríntios haviam esquecido o que era devido a Cristo como Filho sobre Sua própria casa, a “casa do Deus vivo”, a “habitação de Deus no Espírito”.

 

Como já foi observado, neste caso de disciplina da assembleia não se trata de uma restauração pessoal daquele que é o objeto da disciplina, mas da responsabilidade comum de todos de protegerem a casa da contaminação. A restauração do pecador pode ser o resultado da disciplina da assembleia; mas isso é outra coisa e não tem nada a ver com a necessidade da disciplina da assembleia como tal, nem pode alterar o seu caráter. O Nome do Senhor deve ser vindicado primeiramente.

 

Se casos como 2 Tessalonicenses 3:6-15, ou de uma repreensão pública, são designados como disciplina da assembleia em um sentido geral, não tenho objeção a isso; apenas eles aparecem para mim, como já disse, antes como meios para evitar a necessidade de disciplina por Cristo como “Filho sobre Sua própria casa”, que é a excomunhão da assembleia, e assim é ao mesmo tempo o começo e o fim da disciplina da assembleia em sentido estrito.

 

A autoridade de Cristo como Filho sobre a Sua própria casa é guardada e mantida por meio da presença e eficácia do Espírito Santo (o Qual glorifica a Cristo) na Igreja, como a “habitação de Deus no Espírito”. Ao dizer isso, não quero dizer que o próprio Cristo não pudesse assumir e exercer diretamente essa disciplina para a manutenção de Sua autoridade sobre Sua própria casa, caso Lhe agradasse fazê-lo. Houve casos solenes disso. Seu poder e autoridade são os mesmos em nossos dias como quando “Judas... saiu logo e era já noite”.

 

Mas quando a condição espiritual de uma assembleia é boa e, portanto, a operação do Espírito Santo não é impedida, a disciplina da assembleia, quando necessária, será realizada com pouco ou nenhum impedimento. Mas onde o estado de uma assembleia for baixo ou positivamente ruim, como foi o caso em Corinto, a execução da disciplina da assembleia será comparativamente difícil[5]. Mas para tais casos de dificuldade, que ocorrem com demasiada frequência nestes últimos dias da Igreja na Terra, a graciosa promessa do Filho sobre Sua própria casa torna-se duplamente graciosa: “onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles”. Ele não diz “Meu Espírito está”, mas “Eu estou”. Mesmo na Igreja de Corinto ainda havia indivíduos fiéis, como Estéfanas, Fortunato e Acaico; e o próprio Senhor estava no meio deles e executou a disciplina necessária por meio de Seu apóstolo. [5] Compare a disciplina no caso de Acã (Js 7) com aquela em Judas 20, onde a sua execução causou a extirpação de quase toda a tribo de Benjamim. Compare ainda Atos 5 e 1 Coríntios 5

 

Dois casos são especialmente mencionados nas Santas Escrituras, onde o Senhor, como Filho sobre Sua própria casa, exerce disciplina. A primeira é a de Ananias e Safira; e a segunda, a exclusão do iníquo da igreja de Corinto.

 

Ananias e Safira 

No caso solene de Ananias e Safira, vemos a disciplina do Filho sobre Sua própria casa realizada pelo poder do Espírito Santo por meio do principal dos doze apóstolos. Ananias e sua esposa concordaram juntos “para tentar o Espírito do Senhor”, e por esse pecado de hipocrisia e afronta, sofreram a morte pelo poder do “Espírito de verdade” (contra Quem eles mentiram) agindo por meio de Pedro. Este caso não era de disciplina da assembleia em sentido estrito, na medida em que a Igreja como tal não poderia assumir nenhuma participação ativa nele (exceto por reconhecer praticamente o que havia sido feito), pois sua responsabilidade por tal participação só poderia, é claro, aplicar-se a pecados conhecidos e manifestados. Com Ananias e Safira, Cristo atua como Cabeça da Igreja por meio do Espírito Santo. Ananias e Safira mentiram “ao Espírito Santo”; eles mentiram “a Deus” e concordaram juntos “para tentar o Espírito do Senhor”. Nas Santas Escrituras, o pecado deles é exposto em todo o seu horror.

 

Corinto 

Em 1 Coríntios 5 temos a apropriada disciplina da assembleia como tal, em seu caráter completo, isto é, Cristo como Filho sobre Sua própria casa, por meio de Seu apóstolo da Igreja lembrando aos santos em Corinto sua responsabilidade de purificar Sua casa da contaminação (Jo 2:13-17), despertando-os assim para o senso do seu dever sob a graça de “Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo”.

 

O câncer do espírito partidário minou a Igreja de Corinto a tal ponto que toda verdadeira bênção se tornou quase impossível. Apenas alguns, como Estéfanas e sua família, Acaico e Fortunato, pareciam ter-se mantido sem contaminação em meio ao fermento que levedara quase toda a massa, e que fez sentir seus efeitos perniciosos em todas as direções, inclusive se estendendo até mesmo à mesa do Senhor, onde muitos não discerniam mais o corpo do Senhor. Esse terrível pecado de profanação foi visitado pelo Senhor em alguns casos com doenças e em outros até com a morte.

 

Existe uma lei natural bem conhecida, que diz que quanto mais delicada, terna e excelente for uma coisa, mais rápida e completa será a sua corrupção. Pela mesma razão, um apóstata cai num grau mais baixo de degradação moral do que muitos homens não convertidos, entregando-se a pecados os quais os incrédulos se envergonhariam. Assim foi em Corinto. O câncer do espírito partidário, com suas paixões concomitantes de vaidade, vanglória e ciúme, minou tão completamente a base Cristã originalmente sólida na Igreja de Corinto, que eles não apenas ficaram individualmente orgulhosos em si mesmos, mas entre si e uns contra os outros; os diferentes partidos comparando-se entre si e exaltando-se uns acima dos outros, em vez de em humildade considerarem-se uns aos outros melhores do que si mesmos. Quanto maior o orgulho, mais profunda será a queda. Assim aconteceu em Corinto. Um pecado de caráter tão vergonhoso e antinatural, que nem mesmo entre os gentios havia, foi cometido no meio deles. Mas em vez de se lançarem com muitas lágrimas diante do Senhor, como fez Esdras e aqueles que estavam com ele, que tremeram com as Palavras do Deus de Israel por causa da infidelidade daqueles que foram levados cativos, e em vez de dizerem a cada um: “Meu Deus! Estou confuso e envergonhado, para levantar a Ti a minha face, meu Deus, porque as nossas iniquidades se multiplicaram sobre a nossa cabeça, e a nossa culpa tem crescido até aos céus... Nós temos transgredido contra o nosso Deus... mas, no tocante a isso, ainda há esperança... e agora... que coloquemos fora” (Ed 9:6; 10:2; 10:3 – JND), os coríntios continuaram a ficar orgulhosos, e Paulo lhes diz: "nem ao menos vos entristecestes, por não ter sido dentre vós tirado quem cometeu tal ação".

 

Cristo, como Filho sobre Sua própria casa, interveio por meio de Seu apóstolo a fim de manter tanto Sua própria autoridade desconsiderada quanto a pureza de Sua casa. Paulo, em virtude da autoridade apostólica que lhe foi concedida pelo Cabeça da Igreja, foi, portanto, obrigado a escrever aos coríntios. “Eu, na verdade, ainda que ausente no corpo, mas presente no espírito, já determinei, como se estivesse presente, que o que tal ato praticou, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus”.

 

Mas Paulo agiu aqui em virtude da sua autoridade apostólica, não exatamente como Pedro fez com Ananias e Safira, pois em Corinto o pecado a ser tratado era conhecido por todos, o que não aconteceu no de Ananias e Safira. Tornou-se, portanto, necessário que a Igreja de Corinto, como tal, em sua responsabilidade pela santidade e pureza, tornando-se a “casa do Deus vivo”, participasse da colocação do mal fora, o que deu a esse ato solene o caráter não apenas de disciplina apostólica, mas de disciplina da assembleia[6]. Paulo, portanto, embora falando com plena autoridade de apóstolo do Senhor Jesus Cristo (como Cabeça da Igreja e Filho sobre Sua própria casa), e como apóstolo da Igreja, “em nome do Senhor Jesus Cristo”, ao mesmo tempo, como membro da Igreja, que é o corpo de Jesus Cristo, assumiu seu lugar comum entre eles na assembleia, acrescentando: “juntos vós e o meu espírito, pelo poder de nosso Senhor Jesus”. [6] O malfeitor, o “iníquo”, não deveria apenas ser afastado da mesa do Senhor, mas “dentre vós”. É dito a eles que “com o tal nem ainda comais”.

 

Naquele grande e honrado servo de Cristo percebemos, em belo uníssono, autoridade apostólica, humildade Cristã, graça e sabedoria, para despertar o coração e a consciência dos coríntios, tão cegos pelo inimigo, para fazerem o que era devido a Deus e Seu Filho, como Cabeça da Igreja, e para obter o resultado desejado para a própria glória de Deus e sua bênção comum, e para a restauração daquele que caiu.

 

Que Deus conceda à Sua Igreja, nestes dias perigosos e difíceis de declínio, graça e sabedoria, bem como decisão e fidelidade em seguir o exemplo de Seu grande, porém humilde, apóstolo. Nestes dias de espírito partidário religioso, carnalidade e mundanismo (onde o exercício da verdadeira disciplina piedosa no temor e no amor de Deus e de Cristo se torna mais difícil do que nunca, embora nem por isso menos obrigatória por esse motivo), os mestres e pastores, dados pelo Cabeça da Igreja, farão bem em se lembrar (no caso da necessidade de disciplina da assembleia, algo tão triste e humilhante para todos nós) que eles são “irmãos”, assim como pastores e mestres. Em tais ocasiões angustiantes, não haverá nenhum proveito dirigir-se à consciências adormecidas, com autoridade quase apostólica, para despertá-las da sua condição dormente. Este não é o caminho nem para o coração nem para a conciência deles. Uma disciplina da assembleia realizada desta maneira não produzirá “frutos pacíficos de justiça”, mas exatamente o oposto. Este não é o espírito do “Filho sobre a sua própria casa”, que lavou os pés até mesmo de um Judas, antes de exercer a disciplina, nem é o espírito do Seu apóstolo, que se autodenominava “menor do que o mínimo de todos os santos” (Ef 3:8 – TB) e falou até chorando daqueles “que são inimigos da cruz de Cristo”. O caminho para a consciência passa pelo coração, e se não soubermos como encontrar o caminho para o coração de um irmão, não encontraremos o caminho para a sua consciência (2 Pe 3:1; Jo 21:15-17).

 

O poder de ligar e desligar

 

As palavras “ligar” e “desligar” significam poder em ambos os sentidos. Tanto a carne religiosa quanto a natural amam o poder e a autoridade, e cada uma delas às vezes os usa “com vingança”.

 

A quem pertence por direito o poder de “ligar”? Todo crente concordará comigo ao dizer: Àquele que “amarrou o valente e despojou-o dos seus bens”. E quem tem o poder de “desligar”? Somente Ele disse àquela filha de Abraão a quem Satanás amarrou durante dezoito anos: “Mulher, estás livre da tua enfermidade... e logo se endireitou e glorificava a Deus”. Aquele que chamou Lázaro da morte e da corrupção para a vida e disse: “Desligai-o e deixai-o ir”; Aquele “ao Qual Deus ressuscitou, desatando [desligando – JND] os laços da morte; porque não era possível que fosse por ela” (TB) – somente a Ele pertence por direito o poder de “ligar” e “desligar”. Se Lhe agradou, durante a Sua ausência desta Terra, delegar parte dos Seus poderes aos Seus apóstolos e discípulos ou à Igreja, quem contestaria o Seu direito de fazê-lo? Mas somente Ele é e continua sendo a fonte de todo poder e autoridade. Aquele que os deu pode retirá-los novamente, e assim o fez, onde esse poder e autoridade foram abusados por despenseiros infiéis e falsos pastores ou pela indiferença de Laodicéia quanto ao seu próprio engrandecimento e enriquecimento e a opressão do rebanho de Cristo.

 

“Àquele que tem se dará, e terá em abundância; mas aquele que não tem, até aquilo que tem (ou, como diz o Evangelho de Lucas, “o que parece ter”) lhe será tirado”.

 

Vamos considerar agora:

 

  1. Qual é o caráter e o propósito do poder de “ligar” e “desligar”?

  2. A quem ele foi dado?

  3. Para que tempo ele foi dado?

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1. Seu caráter e propósito.

 

O primeiro é indicado pelas próprias palavras. “Ligar” alguém significa tirar-lhe a liberdade. “Desligar” alguém significa devolver-lhe a liberdade. Pelo pecado, o homem tornou-se escravo de Satanás, preso pelos grilhões do pecado. Pela fé e regeneração ele é libertado daquela terrível escravidão e se torna, na liberdade com a qual Cristo nos liberta, o servo voluntário e bem disposto de Deus e de Cristo. O homem natural é um prisioneiro espiritual e corporal, preso por Satanás. Deus, em Sua sabedoria, pode permitir que Satanás, mesmo externamente, manifeste a terribilidade dessas correntes, como no caso do endemoninhado e do lunático (Mateus 17:15-21), e daquela filha de Abraão que tinha estado presa dezoito anos.

 

Mas existem outras amarras, as da escravidão legal e do medo, conforme expresso no capítulo 7 da Epístola aos Romanos. Satanás e a lei (por melhor e mais santa que seja) podem amarrar, mas não soltar, isto é, libertar. Cristo liberta de ambos, “havendo efetuado uma eterna redenção”. Somente Ele, que “subindo ao alto, levou cativo o cativeiro”, possui o poder supremo para “ligar” e “desligar”. Em breve Ele amarrará e prenderá Satanás no “abismo”, o príncipe deste mundo, que mantém o mundo acorrentado nas cadeias do pecado e do medo da morte, “para que mais não engane as nações”. Mas depois do reinado milenar de Cristo, Satanás será “solto” e manifestará que o homem, mesmo depois de uma bênção milenar, permanece sempre o mesmo; após o que o “enganador das nações” e “acusador de nossos irmãos” será designado para sua condenação final no “lago de fogo e enxofre... para todo o sempre”.

 

Mas Cristo, que detém o poder supremo de “ligar” e “desligar”, assim como detém todo o poder no céu e na Terra, pode, como já foi observado, transferir para outros uma parte desse poder de acordo com Sua boa vontade, como um rei pode transferir parte de seu poder para seus representantes de maior ou menor grau. Assim, Cristo, como Filho sobre Sua própria casa, com o propósito de disciplina na Igreja durante Sua ausência, delegou a outros parte de Seu poder e autoridade; seja para “ligar” nos casos em que a honra e autoridade de nosso grande Libertador das cadeias de Satanás, do pecado, da morte e do julgamento, e a santidade que convém à Sua casa, foram desconsideradas na prática por um de Seus redimidos; ou para “desligar” onde a “amarração” teve o efeito pretendido e a ovelha desgarrada e arrependida retorna ao bom “Pastor e Bispo da vossa alma”.

 

O “ligar” pode ser de caráter espiritual ou corporal, ou ambos, como no caso do pecador em Corinto, ou mesmo estender-se até a morte, como aconteceu com Ananias e Safira. Em 2 Coríntios 2:5-11 temos o “desligar”, como em 1 Coríntios. 5 temos o “ligar”.

 

O pecado liga, isto é, priva da liberdade. Quem pecou contra Deus não se sente livre diante d’Ele. Encontramos isso já em Adão e Eva como efeito do primeiro pecado. Eles se esforçaram para se esconder de Deus. Se alguém pecou contra o próximo, já não se sente livre na sua presença, mas contido e oprimido. O arrependimento e a confissão removem a pressão e restauram a liberdade e a tranquilidade. Assim é entre Deus e nós, e em nossa comunhão uns com os outros. Mas se aquele que peca não confessa nem se julga por isso (falo, é claro, dos crentes), o Senhor graciosamente providenciou uma maneira de ligar o pecado ao coração e à consciência do impenitente, para fazê-lo sentir seu fardo, dando poder aos Seus para excluí-lo não apenas da comunhão com a assembleia, mas até mesmo com Aquele que está no meio (Mt 18:18), ligando-o, e assim privando-o de toda liberdade e gozo até que ele se arrependa.

 

2. A quem o Senhor conferiu o poder de “ligar” e “desligar”?

 

O Evangelho de Mateus é a única parte do Novo Testamento que fala desse poder. No capítulo 16 Jesus tinha anunciado àquela “geração má e adúltera” que desejava um “sinal do céu”, o “sinal do profeta Jonas”, tão fatal para Israel, ou seja, a morte e ressurreição do seu Messias rejeitado e crucificado. Então Ele “deixando-os retirou-Se”. Tudo acabou para Israel. Era noite. Mas no mesmo capítulo o Senhor mostra aos Seus discípulos o amanhecer da Igreja, dizendo: “Sobre esta pedra[7] edificarei a Minha Igreja, e as portas do inferno [Hades – TB] não prevalecerão contra Ela”. Mas, quanto ao próprio Pedro, o Senhor acrescenta a promessa pessoal especial: “E Eu te darei as chaves do Reino dos céus, e tudo o que ligares na Terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos céus"[8]. Essa promessa foi feita pessoalmente ao apóstolo Pedro, evidentemente em estreita conexão com o poder das chaves para Israel e para os gentios.

[7] Isto é, mediante a confissão de Pedro de que Cristo é o Filho do Deus vivo.

[8] Há algo semelhante no Velho Testamento no caso do rei Nabucodonosor, que à voz de “um vigilante, um santo” foi preso por sete anos e solto novamente quando se arrependeu e se humilhou diante de Deus.

 

E no capítulo 18 do Evangelho de Mateus, onde contemplamos a alvorada da manhã da Igreja, por assim dizer, o Senhor diz: “Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na Terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na Terra será desligado no céu”. Aqui o Senhor confere o poder de “ligar” e “desligar” a todos os Seus, isto é, aos discípulos que estão com Ele, e a cada assembleia; pois Suas palavras aqui estão em estreita conexão com o que Ele disse imediatamente antes e depois.

 

Mas não devemos esquecer o que o Senhor acrescenta imediatamente a seguir, o que naturalmente leva à terceira questão:

 

3 - Por quanto tempo foi dado o poder de “ligar” e “desligar”?

 

Claramente foi dado aos apóstolos do Senhor e aos Seus discípulos daquela época, por toda a vida deles, e também às Igrejas existentes nos dias dos apóstolos. Mas Cristo, sabendo de antemão o uso que uma Igreja infiel faria do privilégio do poder de ligar e desligar agindo em sua autoelevação carnal, acrescentou a graciosa promessa: “onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles”. Maravilhoso privilégio da graça, concedido pelo glorioso Cabeça da Igreja, prevendo estes dias do mais profundo declínio, mesmo para dois ou três (o menor número para constituir uma assembleia) que olham a Ele desde as ruínas, como se eles próprios fizessem parte delas, no sentido da sua própria fraqueza e da nossa vergonha comum. Que são dois ou três mil sem Cristo no meio deles? Nada além de muitos “zeros”  sem um número antes deles. Coloque o número 1 antes deles e isso fará com que dois “zeros” se tornem cem e três deles se tornem mil.

 

Mas leitor Cristão será que você pensa que o Senhor colocará Seu selo nas decisões de grupos pequenos ou grandes, e concederá a eles o poder de “ligar” e “desligar”, decisões essas fundadas em estatutos e ordenanças humanas, ou mesmo aqueles grupos que estiveram originalmente fundados em bases bíblicas, mas abandonaram o caminho da verdade e seguiram a vontade do homem em vez da Palavra de Deus? Nunca! Isso significaria colocar Seu selo naquilo que é contrário à Sua própria Palavra. Ou será que Ele poderia reconhecer as ações da Igreja por parte de um grupo que estevem reunido de acordo com os princípios bíblicos, mas que afundou num tal grau de degradação moral e espiritual que se tornou destituído de discernimento espiritual? Impossível! Isso seria nada menos do que fazer de Cristo o Servo do pecado. Foi Paulo, e não a Igreja de Corinto, quem entregou o iníquo “a Satanás, para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus”[9]. Os coríntios, assim como cada assembleia de Deus, eram responsáveis por tirar dentre eles aquele “iníquo”, mas não podiam entregá-lo “a Satanás”. Somente o apóstolo como tal, poderia fazer isso. Mas nos Coríntios “a tristeza segundo Deus” operou “arrependimento do qual ninguém se arrepende” (2 Co 7:10); ou eles não teriam sido capazes de “desligar” a disciplina no poder do Espírito Santo e com o selo da autoridade de Cristo.

[9] Uma assembleia não tem poder para entregar ninguém a Satanás. Esta expressão tem sido usada como um “bicho-papão” por líderes ambiciosos que ignoram a sua importância. Que uma pessoa excluída por uma assembleia de uma maneira piedosa (isto é, bíblica), é por aquele ato de disciplina colocada fora, isto é, no mundo, do qual Satanás é o príncipe, e onde seu poder está em ação, é solenemente - verdade, mas uma coisa bem diferente.


Excluir ou receber pessoas segundo a boa vontade de líderes humanos ou de um partido é bastante fácil; mas tais “ligar” e “desligar” não são reconhecidos no céu.

A. J. von Poseck

 


 











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